domingo, 30 de dezembro de 2018


Nando Reis que me perdoe, mas o mundo não é bom para todos, Sebastião. Há guerras na esquina de casa. Ouço os disparos sem conseguir ver rosto algum enquanto as notícias denunciam que os atentados estão em outra direção.
Vi de perto o desespero, a fome, o descaso. No surto e apenas uma cebola enfeitando a geladeira enquanto a faca ameaça tocar o pulso e acabar de vez com o pouco que resta. Aquele menino trocando de roupa como se o papelão fosse um cômodo em plena Carioca ainda me dá vontade de gritar. De comer palavras de vergonha por permitir a infância viver aquilo.
Por muitas vezes olho ao redor, buscando um olhar cruzar o meu. Só eu vejo o que vejo? Nos muros busco respostas em desenhos sem autoria. Alguma coisa acontece ao redor, algo que ainda busco explicação, por isso gosto de mudar o caminho, costurando entre uma rua e outra.
Feri meus olhos. Calei-me frente a diversas injustiças. Dei bom dia a meia dúzia de bandidos armados. Tomei café com uma arma debaixo da cama, conversando sobre assuntos levianos. Observo. Apenas aprendo, olhando de outro ângulo.
O pôr do sol nasce mesmo em dias nublados, ele apenas se esconde, como quando o despertador toca e você não quer acordar, mas a vida te obriga a andar para frente. Pedala, navega e transita. Conhece a cidade como nunca viu. Conhece a ti mesmo onde nunca percorreu.
Trezentos e sessenta e cinco dias por extenso, explicam muitas histórias. O tempo alterna meias maratonas que ultrapassam domingos e domingos. Muitas vezes perdida nos dias da semana, planejo o ano seguinte. Com lupas que ampliam os detalhes continuo contemplando alegrias e desgraças que se misturam construindo os retalhos que juntamos ano a ano.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018


Porque nem só de remédio se cura a hipertensão, é preciso muito conversa e convívio.
As mãozinhas amassam a massa e pensam em outras circunstâncias e quando se vê sai um sorriso. Daqui a poucos minutos estão todos dividindo uma refeição. Muitos talvez nunca se viram, ali estão trocando opinião.
Entre panelas e o fogão vai sendo promovido o cuidado. A sabedoria das gerações diz que o doce precisa de uma pitada sal. Quem sou eu para dizer que não.
Um cuida do outro, e cuidar cura a alma. Quando se percebe não se fala mais de doença, mas sim das lembranças do Ceará ou do interior de Minas, ou da roça ou de como mudou a vida.
Entre as facas, os olhares, muitos vivem sozinhos e a solidão machuca, entretanto agora dividem por alguns instantes os talheres.
A culinária é revolucionária, porque o colesterol sozinho não se senta a mesa. É uma ferramenta de aproximação da ciência e a prática.

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Tudo está calmo. Estava. Os fogos anunciam a transição que rapidamente desfaz o cálido dia.
As crianças desaparecem dos becos, as escadas ecoam o esvaziamento. Um território que transita no caos movimentado até findar no aviso de recolher. Reprimir. Sem voz, todos atuam em normalidade, como natural também é o conflito.
Em meia hora a confusão evapora e voltam a mobilizar os movimentos, desconfiados, curiosos em repassar notícias. As manchetes não alcançam esses detalhes e cabe à fala dar sentido aos acontecimentos.
Trabalham as mulheres. As crianças se viram em suas competências, olhando os pequenos com responsabilidade de adulto. Nos bares, os copos se repetem onde o lazer não chega e muito menos oferece opção.
A vida caminha, subindo e descendo a viela, em seu comércio próprio. Inflacionado pelos royalties de se estar onde não se deve. A dicotomia aprimora as diferenças onde as polegadas das tv´s diferenciam as classes mesmos nos cubículos.
Há gente de posse. Há posse de gente. Na mudez feminina dá para se ver os hematomas intrínsecos. No esbravejar à sombra dá para perceber que há guerra. O que se esperar de relações tão próximas? Onde um espirro sentencia a gripe na escassez de espaço. As vidas se esbarram, atravessam as paredes e se encaixam, empilhadas uma sobre a outra, repetindo histórias de superação e de tragédias.

Assim, visitam às madames. Visitam, porque lá não pertence a realidade que atravessa a rua. Deixando de lado o trajeto. Vestindo o figurino. Anunciam os fogos outra vez. Difícil descrever o que deve ser pensar nos filhos que brincam de adultos até o expediente acabar.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Um fio tece as relações. Cada um de um lugar, carrega uma bagagem única.
Somar é como nadar contra a corrente onde subtrair é regra. O monoteísmo é substituído pela terna doação.
A expectativa vai tomando corpo. Cada voz tem um sentido, uma direção. Já somos diferentes hoje de como chegamos. Quanto temos a ganhar ao cruzar a linha de chegada?
O fio perpassa ligando as histórias. Não me faltam ideias. Achar ouvidos é que estava difícil.
Encontrar paradeiro para o pensamento, que em vez da censura estende o assunto é como achar um tesouro em meio a moedas sem serventia.
O desenho se estica em sorrisos. Sem cobranças. A família é o que se constrói, muito além dos sobrenomes.
Os debates expandiram a caixa craniana. Os desafios ampliaram os conceitos, submergindo da rasa opinião para uma imensidão oceânica.
Foi assim que criei asas, onde antes era proibida de alçar voos.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Junho. Olimpíadas no Rio. Manchete internacional.
Cubro o rosto de vergonha. Ponho um lenço para me afrancesar. Eu não tenho culpa, nem o que me desculpar.
Algumas modalidades foram adaptadas. Não por mim, que fique claro. Lá foram elas: salto em buraco tomaram lugar do salto em distância, maratona contra arrastão, nado em esgoto, ciclismo na ponte levadiça, pelada dos sete anões.
Eu poderia jurar de pé junto que a Al Qaeda recrutou todos os Aedes aegyptis  da face da Terra, mas eles nem precisaram fazer o esforço. Daqui a pouco por si só a zika domina a Europa.
Antes que todos saiam ictéricos na Lagoa, eu fujo. Já arrumei meu passaporte para as Maldivas. Caetano diz para eu ficar odara, mas não estou muito confortável com essa situação.
Rodei a cidade inteira para me esconder antes da viagem. Tropecei num buraco na pista e ironicamente chamei toda a atenção. Pedalei umas três vezes antes de me espatifar na Santa Clara. Acudiram-me todos os transeuntes. Chorei por medo de sabotarem meu plano.
Não demorou muito para uma senhora cair na mesma cilada e desviar para ela todos os olhares que pousavam em mim. Tomei coragem. Respirei fundo e tomei a reta da praia. Me esgueirei para pegar a tinta do homem de lata performista que estava na orla. Corri o mais rápido que pude. Entrando numa rua sem saída, pintei-me de cobre. Até meus cabelos levaram uma demão.
Esperei escurecer e no meio das prostitutas e travestis, eu já não chamava atenção.

Decidi ficar! Sentei-me com Drummond, engessando uma pose para os próximos dias e até agora estou esperando junho acabar.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Quarta feira. A imprensa conta os dias para o resultado dos votos.
Impeachment. Pode? Não pode? Golpe? Não golpe?
A dúvida reina. De um lado estrelas comem mortadela, do outro coxinhas. Uma miscelânea gastronômica zero estrelas no Michelan.
Um voto é agora como uma pena de morte. Um duelo se fez em silencio. A arquitetura do planalto foi planejada toda em teto de vidro, cuja as pedras são ditas.
Se eu levantar a voz, posso não acordar amanhã. Se eu ficar quieta pode ser minha candidatura de inocência. Eleição após eleição foi um jogo em silêncio. Sorriso no palanque, dinheiro escondido na cueca. As feministas quiseram protestar. O FEMEN veio com tudo. Não demorou muito e lá veio dinheiro na calcinha.
Uma distração, já estão na minha janela. Devia ter pensado nisso antes. Os desempregados estão com tempo livre, e agora são muitos. Não posso virar a próxima capa.  As olheiras não enganam, denunciam o diazepan barato que não fez efeito. Escondo meus dentes na boca.
Faltei as aulas. Confesso comprei meu diploma. Fidel era meu amigo, quebrou meu galho. Pronto falei. Me esmerei nos discursos, mas dizem por aí que pareço uma transloucada. Os que não ouviam agora escutam.
Quando anunciaram o Lava-Jato achei que era uma utilidade pública para lavar os carros executivos. Ledo enganam. Agora perco o sono e grito para as paredes me darem razão.
Estou triste. Não posso mais sair do país. Me convidaram para uma festa hi society, mas a dança das cadeiras ficou séria e agora eu não posso correr o risco de temer. Todo mundo quer puxar minha cadeira e eu preciso fingir que não sei porquê.


Um complô se formou por debaixo dos processos. Ataram minhas mãos. Digo isso, logo afirmam que não posso. Nomeei meu cachorro de Cerveró, disseram que é ilegal. Desapropriaram meus superpoderes presidenciais, nem ministro eu escolho. A criptonita deve estar mesmo estocada na Polícia Federal. 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

De repente secaram as bicas. Primeiro as torneiras da cozinha, depois, o banho só se fazia de mar. A princípio ninguém se ateve a esse detalhe, todos contavam com a expectativa da água voltar no final do dia a encher as caixas d´água. Para imensa surpresa, a água não encheu os canos, nem mesmo a chuva inundou o céu.
O noticiário foi impedido de contar o trágico fato para controlar o desespero. A boca seca causava certo mal estar, entretanto, as reclamações eram pequenas em relação à grandeza do problema e isso censurava qualquer palavra por enquanto.
Os engenheiros puseram-se a pensar em alguma solução. Os químicos pensaram no dinheiro capaz de ser gerado com oxigênio e dois hidrogênios, mas um conselho de ética limitou a ganância contida nos jalecos.
Após todas as opções se esgotarem e até o mar diminuir de volume, uma ideia cresceu no vazio. Diante da amargura de uma vida seca, milhões choraram de tristeza. Cada gotinha preciosa que caía, evaporava ao tocar os lábios secos. Devido à extrema necessidade, as lágrimas passaram a valer muito. 
Lotaram salas de cinema com filmes de Titanic e horrores do holocausto. As lágrimas escorriam num recipiente onde eram coletadas. Crianças recebiam susto para abrirem o berreiro. Testaram as bombas de gás lacrimogênio, porém, certa substância tornava a lágrima imprópria e as autoridades viram que teriam que buscar outras alternativas ainda mais eficazes.
Passaram-se alguns meses, e a população fazia rodízio no apanhador de lágrimas. Aos poucos, cada lágrima lançada era mais escassa. O costume seca, como uma vacina que previne das mazelas. As matanças não surtiam mais efeito, os amores não emocionavam mais. Apáticos, um exército de olhos esgotados olhavam para o horizonte, onde quer que ele fosse, sem uma direção. A tristeza não causava mais efeito.
 Um homem ousou expor uma nova tentativa, fez o reverso de tudo já visto. Lançou mão do seu jeito abobalhado e se debruçou no primeiro menino que viu, fazendo uma graça. O efeito foi imediato. Riu, e rindo via-se brotar dos olhinhos pequenos duas gotas da mais salgada lágrima, ainda mais preciosa.
De tanto sofrerem, sem enxergar saída, ao se depararem com a risada que rompia com o sisudo silêncio de quem perde as esperanças, ocorreu o imprevisível. Como se alguém tivesse acabado de contar uma piada infalível, todos começaram a rir e os cachorros latiram em alguma concordância. As lágrimas voltaram a ser suficientes para hidratar os corpos já enrugados.
De fato, dias depois, os mais importantes perceberam que fazer rir era muito mais difícil que fazer chorar. Os melhores comediantes foram requisitados em auditórios para fazer chorar de rir, esses também sorriam, pois, haviam dado adeus ao desemprego que passaram por aqueles meses atrás.
De um dia para o outro, da mesma forma que alguém secara a água, derrubou um temporal sobre o chão, a encher as folhas murchas de cada plantinha, como se alguém houvesse simplesmente esquecido de molhá-las.