terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Toquei com os dedos ainda dentro da luva a gota branca que corria no ar. Desnudei a mão direita para não congelar de vez, sentindo quase a mesma temperatura. Era como se eu já a conhecesse em sua profunda brancura.
Alguém deveria fazer a brincadeira estúpida, arremessando a bola de gelo contra as costas de alguém mais distraído; pondo-se a correr pelo medo da vingança. Vê-lo em disparada fez subir um calor obrigando-me a tirar o cachecol que já tomava a forma do pescoço.
De tanto ir a Nova York de filme supunha-me íntima, achando tudo muito maior. Na proporção da minha sala, cabia tudo! A Quinta Avenida era uma enorme Visconde de Pirajá salpicada de branco.
Enfreitei a fobia do metrô no terceiro dia, o caos falado em diversas linhas. Havia momentos em que o inglês falhava e eu pedia com a expressão do rosto para que repetissem.
Eu tinha a impressão que o frio não caberia nos dentes, tremendo. Escorreguei algumas vezes na calçada quando o sol aparecia derretendo o gelo.
Conheci tantos museus numa tarde que meus pés poderiam chegar antes em casa, suplicando por descanso, enquanto os olhos se enchiam de cores. Confundia os pintores numa linda ignorância, prestando atenção apenas na beleza de cada detalhe.
Nas roupas esquisitas que desfilavam pelas lojas, confesso que senti vergonha.
Vi garçons cantando e dançando, equilibrando bandejas. Ainda fazíamos planos para o dia seguinte. Quando traziam o pedido eu levava um susto com o tamanho das porções, lembrando inconscientemente do filme do Michael Moore.
Encontrava sempre uma boa surpresa; a multidão que não cansava de andar; imensas lojas de brinquedos com tudo o que eu não herdara dos meus irmãos quando eu era menina.
Antes de dormir desejava-lhe boa noite não querendo dormir. Torcia para o dia de repete ter mais horas. Cada dia era uma despedida. Quis subir no prédio mais alto para garantir ver tudo o que o tempo poderia não permitir. Quando cheguei lá vi a cidade acender em luzes coloridas. Era mesmo maior que meus olhos poderiam ter previsto.
Comi cada pedaço de torta querendo roubar a receita, cheirei cada perfume querendo levar na pele, vesti cada roupa imaginando em meu cabide, levei você comigo com um sorriso nos olhos.
Antes que eu voltasse para o avião pousado em minha cama recebia notícias sempre, e era como se eu estivesse mesmo lá.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Tinha mãos de mímico, falando mais que a própria boca em inquietação constante.

Os gestos argumentavam. Cada dedo tinha alguma razão. Apontava o indicador como se fosse uma arma, mas o gerente nada pode fazer por ele.

O restaurante cheio o interrogava com olhos que não cabiam nas órbitas. Saiu de lá chutando os canteiros, amontoando as notas do cartão de crédito no bolso, deixando cair metade dos outros comprovantes.

O caminho de casa pareceu mais longo aquela tarde. Todos os sinais de trânsito fechavam contra seu favor. Alguma força estranha desafiava sua paciência que já era pouca.

Logo que o nervosismo cessou, tratou de esticar as pernas sobre a poltrona, para o sangue voltar ao lugar certo. Ponderou as tragadas de cigarro para que nenhum vizinho viesse até a porta reclamando do cheiro forte que o cigarro produzia, assim como houve antes no salão repleto de cadeiras ocupadas no restaurante.

Jurou que nunca voltaria. Logo repensou sua promessa pelo salmão que o viciara. Teve vontade de processar o estabelecimento por incentivar o vício, com letras escritas em giz amarelo anunciando “Temos salmão com alcaparras”. Talvez ganhasse muito dinheiro fazendo isso. Mal possuía dinheiro para comer lá, que dirá pagar um advogado. Teve que pendurar esta idéia também.

De tantas idéias aposentadas havia horas em que preferiria ser uma ostra, filtrando uma água bem imunda. Torceu pela outra encarnação ser mais generosa. Pediu ainda forças para resistir ao salmão. Tudo para não olhar para aquele gerente entupido de deselegância.

Por aquele momento queria guardar o silêncio penetrando na cabeça cheia de contas. Fechava os olhos tentando cochilar. O sono não vinha. A preguiça não deixaria levantar sequer uma perna até a esquina para comprar outro maço de cigarros baratos. Sua vida pendeu sobre o estofado azul gasto pela gata da ex mulher que puxava todos os fios ao acordar; e ela acordava várias vezes ao dia..

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Que ironia a morte estar por todos os lados. Estava mais viva do que ela, sendo uma constante ameaça.

Morriam sempre mais de três na sua sala de jantar, até que sua mãe deixou de ver jornal. Morria alguém atropelado, algum motoqueiro mais descuidado que deixou o capacete no braço e rolou por debaixo de um ônibus lotado. Morreu um mendigo queimado, ninguém lhe disso o porquê. Morreu também dois cachorros, um hamster e três gatos; esses óbitos foram os piores, nunca havia se curado.

Numa síncope materna, sua mãe deixou de deixar. Para Ana a morte parecia carregar sua foice pelo quarteirão inteiro quando tinha tiroteio. Ela sabia que não ia poder sair de casa. Ficava esperando a hora de fisgar um duplo assassinato. Achava que ninguém morria se não fosse um tiro bem dado, até que seu tio morreu enquanto passeava na frente do Copacabana Palace e uma marquise lhe acertou a cabeça em cheio. Sua irmã se esvaziou em choro. Ana ficou ali pasmada, achando estranho alguém chorar pelo o que não fosse um cachorro, um hamster que havia se ganhado de aniversário.

Tinha raiva da morte, da possibilidade de matá-la, ao mesmo tempo em que gostava e algumas vezes, inclusive, queria que alguém morresse.