segunda-feira, 24 de março de 2008

Minha infância foi típica. Filho único, brincava de inventar amigos. Dava um nome a cada um deles e esperava que pelo menos um tivesse a coragem de sentar comigo no balanço para pôr as pernas para sentir o vento entrando pelo vão da calça, enchendo as pernas como se dali por diante, pudéssemos voar.

quarta-feira, 19 de março de 2008

No elevador não tiveram tempo de se ajeitar. Ignoraram a câmera, o espelho. Beijos na intimidade de quatro cantos. Um porteiro assistindo tudo como se fosse um programa ao vivo; no fundo queria participar.

Não se ouvia som algum. Gemidos abafados pela vontade de preservar alguma sensação maior. Aos poucos aparecia um vizinho ou outro reclamando que o elevador estava com defeito. O senhor de bigode virava a tv, afirmando dar logo um jeito, depois tornava a sentar no seu trono privativo.

Com a demora no conserto, os moradores se rebelaram para ver em qual andar o bendito estava parado. O pequeno vidro deixava escapar os dois entregues um ao outro. Foram se aglomerando para ver um detalhe a mais. Na maioria eram homens, fantasiando estarem lá. Esqueceram o esforço de subir escada, um por um esticava o pescoço para ver melhor. Na semana seguinte, ninguém mais usava o elevador para outro fim, e também ninguém reclamava.

domingo, 16 de março de 2008

Domava a saia contra o vento, protegia os cabelos da chuva. Esperava o ônibus por mais de meia hora, agitando o pé esquerdo. Brincava com o cabelo, enrolando-o entre os dedos.

Finalmente o ônibus chegou. Três números, um motorista servia de cobrador, que deixou dever dez centavos.

Sentou-se do lado da janela que não fechava, alguns pingos escureciam o azul da saia. Perdia o olhar nos postes que parados não seguiam o trajeto, ficando para trás. Fazia certo esforço para ler cartazes de procura por cachorros e meninas, promessas de todos os trabalhos para trazer o amor de volta.

Deixava sua cidadezinha para trás, rumo ao Rio de Janeiro, com prostitutas ociosas no Centro. Manhã abandonada aos mendigos, bêbados largados ao cheiro de urina. Não se assustou com a diferença, achava que Copacabana era muito distante.

Um ponto adiante, subiu um rapaz, descalço. Tinha pupilas gigantes. Sentou do seu lado com uma ameaça nos lábios cerrados, um olhar fixo em sua bolsa de fuxico.

Em sua ingenuidade tentou puxar um assunto. Obtinha respostas analfabetas, com “rs” no lugar do “l”.Ficaram ali conversando até chegar à Enseada. Nunca tinha tido uma conversa o rapaz mulato e magro. Desistiu do furto, levou apenas um sorriso, acenando abismado por trás do vidro.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Olhos assustados acompanhavam o corpo sendo carregado pela rua, depois mudavam de comportamento, virando para o lado em aversão.

As orelhas caídas ouviam insultos, risadas entre dentes. A mulher corria com o quase defunto envolvido nos braços, tentando achar socorro. Ninguém prestava auxilio, apontavam e ficavam ignorando a preocupação. Somente um mendigo elevou as sobrancelhas, como se sentisse compaixão.

O focinho pálido perdia os sentidos com o olhar fixo no outro lado da rua. Corria com outras pernas, parecia nunca chegar ao portão da clinica.

Deboches ficaram na calçada. Ninguém acatava salvar uma vida. Aprovaram a eutanásia. Nem um latido deu em permissão, taparam-lhe a boca com uma injeção.

domingo, 9 de março de 2008

Dava para se notar que ele era solteiro. Bastava olhar para a quantidade de biscoitos no carro de compras para perceber sua total imaturidade.

Faço deduções prosaicas que geralmente são coerentes. Faltava mesmo aliança em suas mãos. Teria sido mais fácil olhar para um dos membros ao em vez de notar seus objetos de consumo.

O que pensariam caso vissem meu adoçante? Seria eu anorexica ou diabética? Talvez as duas embalagens de café forte explicassem minhas olheiras.

Comecei a ficar paranóica com as compras. Quando eu comprava ovos e farinha logo me questionavam sobre o sabor do próximo bolo, quando eram velas, perguntavam qual era a promessa.

Minhas notas fiscais falavam muito sobre mim. Caso alguém a encontrasse seria pior do que encontrar um diário, saberiam até quanto eu costumo gastar, até das marcas genéricas para economizar.

Passávamos nossas compras coincidentemente no mesmo caixa. Tomava o cuidado de deixar sempre alguém a minha frente. Faltavam sempre verduras. Tinha vontade de palpitar, sugerindo pelo menos o ferro de uma beterraba.

Um dia minha ansiedade não pôs ninguém à frente. Eu e ele deitávamos mercadorias na esteira do caixa, com pressa. Nossa afobação trocou as notas, tivemos que mudar de mercado.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Quase caía. Debruçada na mureta da varanda, assistia o movimento da rua, seus carros e pedestres. Fazia muito esforço para ouvir o que se dizia quando passavam com gestos mais efetivos. Um gesticular diferente fazia despencar um dos brincos, tamanha a ousadia dos ouvidos em se esticar mais que a própria cabeça.

Enfeitada em seu costume de domingo, deixou cair seu brinco mais precioso. Correu atropelando os degraus, desrespeitando os corrimões.

O portão não se abria apesar de apertos frenéticos. De repente um som abria o clarão da tarde, além das frestas da grade. Já não adiantava correr, seu lápis-lazúli não tinha mais dono.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Era como se aquela risada invadisse meus ouvidos e fosse me consumindo; amolecendo-me. Aquele tom ritmado fazia meu coração mais humano, adormecia meus temores, minha raiva.

Eu sentia medo de sentir algo diferente, ser assim mais gente. Nunca acreditei em mudanças bruscas, mas aquela criança tocava minha alma fundo demais.

Suas mãos eram rápidas. Meus olhos só viam os rabiscos depois, já prontos, sem saber como um traço colou no outro.

Sua carência fazia com que eu dançasse ballet sem musica alguma. Forjávamos uma platéia, de olhos para a parede, com pontas fincadas no chão e um sorriso bobo na face. Agradecíamos, nós duas, como cúmplices de uma brincadeira que depois poderíamos repetir.

Tirava perguntas de não sei onde. Conhecia minha família de tanto questionar como eram. Pedia com os olhos vidrados para levar meu irmão em uma próxima visita, ao mesmo tempo fazia questão de dizer como meu novo corte de cabelo me caíra bem. Dizia tudo como se os seis anos dela tivessem sido privados de som e a língua não coubesse dentro da boca.