terça-feira, 30 de outubro de 2007

Aprendi a cozinhar assistindo Ana Maria Braga e a Ofélia. Aperfeiçoei meus dotes ficando horas diante do fogão. Não via futuro nas panelas então comecei a poupar minhas unhas, comendo em selv service.

Prometi que iria largar as seis bocas, mas em toda festa planejada, eu era incumbida de levar o bolo, o pudim, as tortas, docinhos e afins. Promessas não funcionam bem, o vício vence toda vontade. Estava eu entre as travessas outra vez.

Não tinha dinheiro para comprar os ovos. Fiquei pensando em um modo de transformar a cozinha em trabalho. Plagiei a idéia de alguém muito brilhante. Fiz cartazes e panfletos. Minha foto no jornal de domingo para chamar crianças para se ocuparem fazendo doce.

Tocou o telefone. Muitas matrículas foram efetuadas, minha satisfação era notória. A campainha tocou com risadas atrás da porta, crianças de meio metro invadiram minha sala. Recrutei os meninos pondo um chapéu profissional, dando-lhes colheres de pau.

Cozinhamos todas as quartas pela manhã. Cada dia aparecia mais um. Eu já podia pagar a luz com tranqüilidade.

Abri o jornal e vi ser noticiada uma crise. Achei estranho o mercado em déficit, o desemprego aumentara muito nos últimos meses. Não imaginei ter algo a ver com essa história.

Meu ledo engano passou, percebi que a culpada era eu! Minhas crianças tomaram o lugar das empregadas e copeiras. Estavam todos desempregados. Ninguém reclamava do trabalho infantil.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Sou bem ruim em muita coisa que faço. Mas em algumas eu consigo me superar. Por exemplo, guardar rostos (e associá-los a nomes).

No meio da semana que passou fui numa dessas festinhas que a gente tem que ir por conta do trabalho. Não me sinto confortável nessas ocasiões. Geralmente, encontro umas quatro ou cinco pessoas que eu conheço. E umas dez ou onze que me conhecem - mesmo sem eu ter a menor idéia de quem sejam.

Não é por mal. Talvez o excesso de “mate de latão” esteja acabando com a minha memória. Outro dia, para dividir uma conta no Plebeu, precisei lembrar de como se resolvia equação de segundo grau. Jamais acreditei que equações de segundo grau pudessem ter uso prático, mas foi uma situação meio específica. O fato é que eu não conseguia lembrar de jeito nenhum. Sequer soube dizer se tinha um "delta x" na fórmula. Fiz como sempre fazia nas provas de matemática e chutei "1" para x1 e "-1" para x2. Na confusão, o garçom acabou ficando com 234% de gorjeta, em vez dos 10% habituais.

Desde então, só vou para o bar com uma calculadora científica, embora não saiba como usar.

Mas não é isso que vem ao caso. O que importa é que, com essa memória fraquinha, também não guardo rostos. Normalmente, passo por antipático ou mal-educado, porque não reconheço as pessoas. Juro que não é a intenção. Por isso, se eu passar por você e não der um "oi", considere que 1. não sou míope, e 2. mas tenho memória fraca.

Desenvolvi, no entanto, uma técnica. Consiste em puxar assuntos que possam me dar dicas de quem é a pessoa que veio me cumprimentar. Coisas como:

- E aí? Ainda está na condicional?

Ou:

- Como é que vai o seu crocodilo de estimação?

Ou:

- Tem visto o pessoal do arremesso de chaleira?

Ou ainda:

- Já terminou de fazer o maior cesto de roupa suja do mundo?

Pode acontecer de a pessoa responder qualquer coisa nessas horas que me sirva de pista. Claro que isso nem sempre funciona. Nesse caso, tento um último recurso. Chamo a pessoa de um nome qualquer, na esperança de acertar. Em geral, tento "Demóstenes" para homens ou "Mafalda" para mulheres. Na verdade, eu não conheço muitas "Mafaldas". Mas sou fã das tiras do Quino.

O uso inadvertido dos ipods fez do silêncio uma regra. As mesas dos restaurantes estão cheias de homens e mulheres sós, monopolizando os gostos em seus ouvidos, sem olhar para a mesa o lado.

Uma tragédia abalou o mundo. A individualidade sensibilizou os ouvidos da multidão. As minhocas que saem do ouvido causaram danos que ninguém calcula. Todo mundo ficou surdo!

Nunca fui adepta da modernidade por isso minhas orelhas só foram adornadas por brincos. Jamais quis comprar um desses aparelhos, pois canto alto e gosto quando acompanham minha melodia. Sempre preservei minha audição, a dos outros não.

Ninguém mais podia ouvir meus agudos. Nenhuma reclamação sobre o que eu cantava. Isso me preocupou!

Todos pensavam que o silêncio fosse uma nova tendência e em silêncio não escutavam as buzinas. Morreram muitos na rua. As aulas andavam vazias, pois todos pensavam não haver sinal. Ninguém sabia que horas eram, pois para eles o sino não soava ao meio-dia.

Ao pé do morro ouvi um batuque. Fui averiguar a algazarra e dei de cara com os tamborins tocando. Participei da festa particular.

Voltei para casa para ver se meu amado sabia o que estava acontecendo. Gritei seu nome inutilmente. Havia uma minhoca saindo do ouvido. Nunca mais ouviria minhas palavras de amor, só entendeu isso quando eu acenei e fui embora.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Nunca acreditei em monstros, exceto o chupa cabra, que depois de crescida não fez parte do meu imaginário. Sabia que Papai Noel era um burguês que induzia a todos a comer e comprar muito para esquecerem a amargura de um ano inteiro.

Achava engraçado comer ovos de chocolate e associar isso a um coelho, como se as crianças soubessem o que é fertilidade. Depois reclamam da precocidade das coisas.

O folclore e o culto são burros! A ignorância impera sendo fácil de ser constatada. Ninguém lembra que Curupira tem os pés virados. Qualquer pesquisa evidencia que trocam o dia da República por Tiradentes. Eu mesma troco tudo, e sou feliz por não saber de nada.

Comemoro o Natal pelos presentes, a Páscoa pelo chocolate. Faço do meu aniversário um motivo para enfeitar um bolo, repetindo tudo com gosto. Uma revolução botaria tudo a perder.

Imagine as comemorações longe da casa da avó, sem mesa cheia de gente e comida? Imagine o ano novo sem fogos, sem roupas brancas e abraços a meia noite no horário de verão? Seria mais fácil trocar as datas, comer nozes no inverno tropical, vestindo branco no dia de finados.

sábado, 20 de outubro de 2007

Era madrugada quando resolvi subir no muro para arranjar distração. Deslizei pela marquise do cinema, tomando cuidado para não fazer barulho para os que passavam na calçada. Troquei o letreiro do cinema por algo mais divertido. Um sintoma altruísta. Escrevi meu nome. Ninguém deveria notar o novo efeito até amanhecer.

Passei no mesmo lugar pela manhã para ver o que acharam da minha arte escrita. Uns não notavam diferença, outros acharam graça. Nada fizeram para mudar as letras de lugar. Assim ficou meu nome lá, com ares de estrela, encantando quem passa e reconhece semelhança entre os pronomes próprios em cartaz.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Calculei mal a hora. Elaborei o cardápio com muito capricho, mas não dei atenção aos ponteiros.

Comi folhas com as mãos. Penteei o cabelo. Fisguei o nhoque com o garfo em formato de tridente. Troquei de roupa uma dúzia de vezes. Engoli o suco. Calcei os sapatos. Lavei a louça. Escovei os dentes. Saí pela porta de trás, levando o lixo para fora.

Corri para o ponto do ônibus. Não deu tempo de chegar até a outra calçada. No meio da rua subi as escadas do veículo, tropeçando entre o segundo e o terceiro degrau, me segurando na roleta.

Há três meses não sou legitima. Enrolei tempo bastante para renovar minha carteira de identidade. A maioridade não moldou meus adiamentos.

Cheguei ao shopping esperando ser recebi com categoria. Havia posto lápis nos olhos para sair bonita na foto. Chegando ao segundo andar, vi muitos bancos ocupados, fiquei pensando como era bom ver tanta gente aproveitando a tarde para passear no meio da semana. Contente, fui até a porta do Detran, um homem barrou minha entrada dizendo que eu deveria entrar na fila. Olhei para onde ele apontava e notei que era para o último banco.

Conformei-me em voltar outro dia. Dei uma volta entre os mendigos no centro. Apaixonei-me por um par de sandálias, mas tive que abandoná-las na vitrine.

Resolvi voltar para casa. Fiquei esperando o ônibus, imaginando uma canção para embalar a espera. Um homem veio correndo com uma bolsa na mão, empurrando-me em direção ao asfalto. Meu ônibus chegou e me levou até a esquina, entre suas rodas.

Não acharam nenhum documento. Eu era um indigente. Uma multidão se aglomerava ao meu redor, um homem falava ao telefone disfarçando a voz; destacava-se entre os outros pelos óculos escuros. Uma voz gritava no celular, chamado à ambulância. A ambulância chegou minutos depois. Meu corpo foi posto na maca. Não fui para o hospital. Acordei na sala de anatomia com minha irmã examinando minhas lindas unhas.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Sempre quis redescobrir o que havia por trás daquela porta. O quarto escurecia no meio da tarde. Evitava ousar tocar na maçaneta depois de tanto tempo.

Minhas lembranças estavam ali trancafiadas. Minha memória em anexo. Era em fotos que eu esquecia o passado, tudo amarrotado em caixas. Misturava a infância com a maturidade, os hotéis com paisagens, viagens com a rotina. Perdia a cronologia. Era estratégia para não ter arrumação que pudesse pôr tudo em ordem, para não saber distinguir o começo do fim.

Resolvi procurar a chave. Não obtive êxito. Meu coração disparou, bati na porta em desespero como se alguém pudesse abri-la, como se uma foto tomasse forma, andando para me acudir.

Perseguia-me a ausência de recordação. Os sonhos não possuíam rosto, apenas o meu. Era estranha a sensação de solidão em reflexo.

domingo, 14 de outubro de 2007

As orelhas implantadas pelo corpo não me assustam mais. Leio o jornal pela internet, às vezes sinto saudade de tocar o papel e ficar com a sensação de que meus dedos estão sujos.

As notícias se repetem. As imagens possuem mais importância que o ínfimo texto. Basta passar os olhos pelas fotos e já dá para deduzir tudo.

Canso de ficar sentada exercitando os olhos e vou para rua. Alugo um cachorro alheio para me fazer companhia. Paro para tomar água de coco até que um homem estende o braço e diz ser por sua conta. Achei estranho, normalmente se paga por martine, caipirinha e cerveja escura. Tive vergonha de recusar a oferenda, peguei o canudo e fui sentar no banco adiante. Ele veio trazendo outro coco, já se apresentando.

Ficamos conversando e quando vi estava mostrando os pulsos e cruzando as pernas em sua direção. Era um bom e um mau sinal.

Não sabia o que fazer. Encontramos-nos com freqüência depois daquele dia. Havia um problema; ele era feio. Não sabia onde esconder aquele nariz gigante, a risada eufórica que me constrangia, tinha vergonha de dizer que era ele.

Inventei uma desculpa e o levei para o salão com a intenção de domesticar aqueles cachos. Nada dava jeito, tive que passar formol. Evitava beijá-lo em publico, negava suas mãos em contato com as minhas. Domesticava seus gestos exagerados.

Tive uma lembrança súbita do implante de orelha. Estava tudo resolvido, encontraria um rosto novo e seríamos felizes para sempre.

Saí no cair da noite a procura de um galalau. Encontrei um tipo italiano com nariz afinado, olhos grandes e amendoados, uma boca bem traçada. Eu tinha que ser rápida, abatia a presa com um golpe na cabeça. Achei que ele não tinha morrido de primeira, acertei-o outra vez por garantia. Destaquei a face e colei. Casei dois meses depois.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Fui para Bariloche porque o dólar estava desvalorizado. Reconheci alguns amigos no avião. Dormi. Desembarquei com todo mundo falando alto, dando dois beijos e dizendo até logo.

Os taxistas falavam entre dentes que havia carros lá fora por um preço camarada. Olhei o homem na cabine reprimindo-me com um olhar fulminante. Preferi usar o transporte que parecia mais legal.

No hotel uma confortável cama me esperava. Um quarto colorido com vista para a avenida que não parecia ter fim.

A cidade lembra um formigueiro. Todos vestindo seus sobretudos com faces rosadas de frio. Há muito estilo em aparentar ter uns vinte quilos a mais. Montada em botas de saltos altos, até em mim caiu bem.

Passeando encontrei alfajor made in Brasil, Caetano cantando no topo das paradas, pessoas de luvas manuseando suas capas, com bicicletas encostadas na mureta.

Na rua, pedaladas para espantar a temperatura baixa. Sorvetes nas vitrines, a língua passando e grudando nos lábios congelados.

Andei de esqui imaginando estar na Suíça, para tornar tudo mais fascinante. Amorteci a queda com os casacos que vestia. Caiam mais três comigo e toda vez que eu ia perguntar se estava tudo bem, rebuscava meu castelhano, mas obtinha a resposta em cru português. Devia ser espontâneo!

No jantar a lareira estalava, me aquecia com chocolates embebidos de licor. Não me restara escolha senão passar fome. Sem comer carne é difícil se alimentar quando só são servidos cervos e bifes sangrentos. Ficava só na entrada de legumes. O doce de leite era suficiente para enganar o vazio na barriga.

Encostava e embaçava o vidro, desenhando qualquer coisa sem motivo. Passava o dedo sobre a superfície gelada, observando o que não estava fosco do lado de fora. Alguém que não conseguia identificar o sexo me acenava do outro lado da calçada.

Ouvi um tango do saguão e fiquei admirando os passos ligeiros. Ensaiava com os olhos meu próprio espetáculo, prometi voltar e me inscrever em uma aula de dança.

Quis ir embora com um objeto que me armazenasse a neve e o aglomerado de gente na bagagem. Comprei uma lembrança para enfeitar a cabeceira; voltei para casa e descobri que era o mesmo do camelô ali da rua.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Tive uma idéia extraordinária! Seria melhor se alguém não tivesse tido antes, mesmo assim ouso pensar em melhorá-la.

Sempre sonhei com o poder. Fascinava-me coordenar um milhão de pessoas, aplaudindo minha ignorância. Pelo machismo desisti de chegar a presidência de maneira confortável. Resolvi o problema! Eu deveria encontrar um bom partido.

Casar comove o povo, teria até um filhinho, lindo! Ele teria tendências esquerdistas, um corte estiloso de cabelo e estatura mediana. Meu suposto marido poderia ser qualquer um. Collor, Lula, Fernando, qualquer um! Casaria e pronto, meio pé no mandato. Seria fácil seguir os passos de Evita.

Treinaria para ser boa mãe, para não causar escândalos, estudaria culinária e faria crochê, sapatinhos para aqueles que me dariam as crianças para beijar a testa.

Daria um golpe na hora certa! È sempre previsível alguma falcatrua no governo. Quem mais poderia levar tudo à tona? Choraria em horário nobre, comovendo as mulheres de boa família, assim abocanharia a eleição seguinte, prometendo acabar com toda a sujeira.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Tudo parece estar em choque! O leite é exportado para a China, roubaram nossas vacas! Nosso álcool não satisfaz mais os poetas, nem mesmo os ônibus atendem ao meu sinal!

Não anda fácil visitar os parentes, as conduções já não colaboram. Causa-me certa preguiça. Um luxo em um ano como este!

Vou a aula e ouço os planos para a festa de formatura. Vestidos, penteados e sandálias, é tudo o que eu escuto. a pressa não se faz necessária. Logo será novembro e tenho certeza de que ninguém vai querer que ele chegue tão cedo.

Confesso que já tenho meu vestido, mas tenho meus motivos para ser a primeira a tê-lo. A moda me exclui pela cintura, tenho que me tornar auto-suficiente, apertando tudo o que compro, como se o tamanho da minha curva fosse algo repressível.