quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Conhecidos pela rua, esbarrando guarda-chuvas. Chovia como se fosse primavera. Um bafo quente induzia a vontade de chegar em casa e tirar a roupa.

Os sinais fechados enrolavam as horas. O desejo de pousar as pernas em um lugar mais alto era tão grande que eu poderia deitar no asfalto e estendê-las no meio fio para ter a regalia do sangue subindo para a cabeça.

Horas em pé faz minha pressão despencar; nem sal grosso me levanta. Sonho com a volta para casa.

Sempre passo em frente ao bar cheio, com maquiagem de trabalho; pensam que vou sentar por ali. Devem se desapontar ao ver que estou indo embora com pressa. Na verdade, tento não olhar para as cervejas na mesa, para não me hipnotizarem.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Renovava a visão ao piscar os olhos. O sol brilhava mais a cada segundo. O calor escorria pelas costas, colando a camisa sobre a pele. Os sapatos quase colavam no asfalto, se fundindo.

Nuvens indecisas deixavam apenas uma faixa de luz aparente. Alguns paravam para fazer um comentário cego, dizendo ser um sinal celestial. A chuva não tardou a cair, eu disse entre dente que os pingos então seriam uma vingança divina, tendo em vista o sábado por chegar. Logo alguém parou para me dar sermão.

Estrago sonhos, rachando-os ao meio, tamanha a severidade do tom da minha voz. Objetivamente não traduzo crença saindo da minha boca. De repente senhoras me abordam, dizendo ainda existir tempo para adocicar minha língua. Quem sabe daqui a alguns anos eu não esteja pregando a palavra bíblica, calando a peste herege. Duvido que este dia chegue.

Religião nunca me exaltou. Não paro para pensar em uma explicação sublime sobre a origem. Não sei falar sobre o começo, mas reconheço tudo que virará adubo no final.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Fiquei feliz por você ter vindo. Só lhe via pela janela, passeando com seu labrador cor de creme. Você parecia pensar alto enquanto chutava as pedras portuguesas soltas na calçada.

Tinha dias em que eu tinha vontade de pular lá da janela para você me acudir com a mesma delicadeza com que dava bom dia aos senhores que dividiam a rua contigo. Minha tolice romântica eu escondia atrás da porta do apartamento.

Uma vez eu joguei um lírio, na esperança de você entender que era eu quem estava lá em cima. Combinei a cor das pétalas com a cor da sua blusa. Ela foi caindo, rodando leve como um vestido em dança. Tocou seu rosto e quase entrou pelo bolso. Foi um jeito sutil de explicar que existia vida atrás das paredes do muro, por trás da cortina translúcida.

Notou o contorno do corpo no tecido branco. Deve ter achado graça em ver as bromélias com a ponta das folhas comidas. Deve ter se perguntado: - De onde surgiu o lírio?

Um punhado de outras flores ainda adornava minhas mãos. Debrucei-me no parapeito, acenando e pedindo desculpas. Pedi que subisse para tomar um café, dizendo que se não houvesse tempo, mancharia a blusa rosada, pois havia tingido os lírios com anilina. Foi assim que colori a sala com a surpresa da sua visita.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Bush exibe uma espada oriental o contraste não me surpreende. A imagem é vendida em jornais. Em plena véspera de carnaval, parece conveniente mostrar um semblante caricato. Aquele sorriso me aterroriza; os olhos não se fecham, dando um tom de condenação a cada espécime diverso.

A política viaja o mundo. Acenos para platéias eufóricas, esperando um deslize no discurso. Após horas de pronunciamento de alguma forma existe um efeito de amnésia. Palavras ditas sem serventia. Mal me lembro da primeira saudação. Presto mais atenção ao murmurinho de início, me abasteço de esperança por o que quero ouvir.

Dentro de cada um perpetua uma vontade de estar no tablado, fazendo promessas por desejo, sem reconhecer o efeito que isso provoca. Tenho certeza que cada cidadão tem pelo menos um plano de cinco metas já feitas. Todos têm tendência à candidatura, por mais que negue.

Eu aprovaria aspirações mais internas. Seria a favor da pena de morte nos casos mais hediondos, para dar lugar aos outros crimes a serem cometidos. Teria lugar para todos os estupradores. Diria isso com um brilho nos olhos, enquanto os hipócritas estampariam a primeira capa com a minha alegria contrastante. Eu sofreria um impeachment antes mesmo de falar sobre a legalização do aborto.

Minha candidatura seria um fiasco, eu teria que fugir para Londres até que meu discurso criminoso fosse prescrevido, perdendo a validade. Eu traria suvenires passados pela alfândega, dizendo que minhas férias foram ótimas. Aguardaria a guarda nacional ser acionada pela tentativa de cumprimentar o novo presidente com um aperto de mãos, estendendo uma réplica do Big Ben.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

O muro não acaba enquanto eu o observo. A única visão faz o trajeto ter quilômetros. Pura ansiedade. Trepadeiras no muro de concreto faz eu pensar o que grafitariam se não houvesse folhas ali.

Vozes rompem o silêncio. Celulares tocam e desnudam a personalidade em toques variados. Alguns discretos, apenas vibram.

Reflito sofre fatos banais. A espera me cansa, observo as janelas do carro. O fume do vidro exalta a silhueta, gestos em excesso. Na caminhonete a carga se agita, sacudindo e ameaçando cair. Acidente com sirene a caminho.

O trânsito pára, o muro não acaba. Sonho em pintá-lo de branco só para poder escrever para entreter a vista de quem passar, parando em cada incidente.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Perdi o juízo. Saio de casa após o almoço, alcanço um transporte coletivo e sigo para onde não há rumo. Peço para parar logo após o túnel. Encaro meus pés em uma calçada desconhecida, sigo as placas até encontrar algo familiar. Dou de cara com Copacabana, com suas areias repletas de guarda-sol, viro a esquina e sei onde andar.

Acho o portão familiar, assim como o número. A porta estava aberta. Subo as escadas e vejo o porteiro distraído. Tento manter um diálogo, mas aqueles olhos pareciam surpresos pela minha visita. Tive que lhe ensinar o que fazer, pedir que interfonasse. Em vez de ligar sentado na mesa, foi lá fora como se ele mesmo fosse entrar no prédio. Achei estranho, mas evitei perguntas.

Entrei no elevador torcendo para que ele não fizesse barulhos extravagantes. Às vezes prefiro escadas, no máximo rolo pelos degraus. Abre-se a porta, vejo olhos gigantes me encarando, um cabelo de quem acabou de acordar, dou um beijo e vou entrando, deixando a bolsa no sofá. Tiro as sandálias e piso no chão frio. Olho o cavalete exposto na saleta, investigo os desenhos por curiosidade.

Toco a pele quente, peço para que tomasse um banho, acabo eu me refrescando com um copo de água. Estendo-me na cama e reclamo da falta de imaginação masculina ao falar do meu vestido verde. Ele parece achar graça, talvez ele próprio tenha pensado o mesmo.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Pinto as paredes de verde, torcendo que isso acalme os ânimos. Dei para tentar de tudo um pouco, já que a racionalidade não estava dando conta.

O computador quebrou com um soco no monitor, descarregava energia nos objetos mais valiosos. Não pude trabalhar, acreditei ser falta de atenção.

Jogava roupas pela janela, eu pacientemente as recolhia e dizia que ele teria que ir embora. Ficava mudo.

Meus gatos miavam aflitos, subiam na pia e derrubavam panelas, como se esperassem alguma atitude minha. Rosnavam enquanto cochilavam, acordando com o rabo agitado.

Não sabia por onde começar. De tanto eu ficar em casa, ele foi se acalmando, parecia gostar de me ouvir cantar de frente para o fogão. Olhava pela sala o abrir e fechar da geladeira, quando eu me virava, ele se esquivava pelo flagra. Sofria de solidão, por não ter onde pousar o olhar.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Perdi minha inocência. Dei-me conta desse processo a partir da frieza de meus atos. Calculo cada passo.

Projetando minhas reações percebo a medida certa da delicadeza. Mulheres devem ser doces e meigas, depois é fácil governar a direção.

Conversava com um amigo em um bar cheio. Tinha tanta fumaça no recinto que eu fumei passivamente a noite inteira. Eu lhe contava sobre a vida, sobre os planos que eu bolava. Eu desfiava as histórias e em seu desenvolvimento eu ia notando como eu fazia propositalmente meia dúzia de pessoas infelizes.

Descobri um monstro de batom e unhas pintadas. Eu conduzia cobaias para a beira da loucura, dizia que os amava e lhe jogava depois de um penhasco enorme. Os enlouquecia por dar o que eles queriam; uma gargalhada para piadas repetidas, um afago após um dia cheio, boa educação para as sogras.

Involuntariamente eu os confundo tirando tudo o que lhes havia dado. Talvez fosse um teste para ver se agüentariam meus acessos de loucura. Eu faço deles um brinquedo, gosto de vesti-los para despi-los, por puro orgulho e deletério. Faria o mesmo episódio se fossem mulheres?

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Faço palavras cruzadas na recepção. Um homem alto me encara pelo espelho pendurado na parede, boceja e senta do outro lado da sala. O ar condicionado me espreme na cadeira acolchoada.

Ouço todos os nomes, menos o meu. Mulheres se equilibram em saltos pretos de sapatos fora de moda, usam laços gigantes no cabelo. Parecem estar paradas no tempo. Meu tempo parece parar. Uma eternidade de espera para meia hora de consulta.

Desde a hora em que cheguei, quis ir embora. Revistas me convidavam a tocá-las, folheei umas três. A música ambiente incitava meus pés a se mexerem por tédio, minhas mãos pousavam sobre o colo, e revezavam-se em segurar meu queixo.

Às vezes acho que médicos são muito carentes, gostam de pacientes aflitos, ávidos por diagnósticos. Esquecem que só queremos sair.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Um menino subia a ladeira equilibrando compras em ambas as mãos. Acenava com uma piscadela gentil em troca de um sorriso.

Fitei suas mãos, alguns calos, uma unha escura. Parecia anêmico pela inteira brancura.

Voltou de casa com uma sacola vazia, começou a catar latas pela rua. Deu-me uma ainda cheia. Recusei por não saber a procedência, ele insistiu. Eu fingi que engoli, logo estendi a oferenda, ele bebeu um pouco. Mexia freneticamente o corpo sem que houvesse sincronia.

Largou as latas e pôs-se a correr ladeira abaixo. Catei latas por ele, esperando que ele voltasse, Em vão, brinquei de tiro ao alvo a noite inteira com um pedaço de ladrilho, arremessando nas latas empilhadas

Acertei uma menina linda que acabou me fazendo companhia. Ganhou-me diversas vezes. Sabotei sua vitória, dei-lhe a lata pela metade e disse que era para ela beber. Pôs-se a correr, então fiquei sozinho, contando os fragmentos de ladrilho.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Empino-me na ponta dos dedos para enxergar além dos carros engarrafados. Os pedestres só possuem cabeças, troco as formas de seus corpos por um momento. Vejo o que não existe. Divirto-me com a criação, tudo fruto de uma mente inquieta, insatisfeita com a realidade.

Notava os olhos entrando pelo meu decote. Encobria uma parte, mostrando as unhas pintadas de vermelho para distraí-lo por um instante. Policiais me põem mais medo que bandido. Por um instante coloquei as mãos no quadril, deixando a vista livre. O que não fazemos por uma informação.

Difícil eleger minha reação ao ver suas mãos me puxando pelo braço. Era uma falsa blitz. Tudo parecia estranho, aquele homem robusto imitava os homens do filme. “Fanfarrão” ele dizia com vontade. Eu sentia tanta raiva pelo plágio que não percebia que ele estava me algemando no poste. Meu gesticular foi sendo amenizado pela força que tinha que fazer para mover os punhos. Minha vontade era de dizer que o José Padilha estava enganado ao inserir na boca do povo palavras vazias.

Gritava em bom português um socorro, depois ia alternando os idiomas. Ninguém se mexia, nem notava que a arma era de plástico.