quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Enquanto todos rezavam junto a cama de mãos dadas e olhos cerrados, eu espiava com um olho só as possíveis reações de um corpo estático. Fechava os olhos quando percebia que alguém mais os abria, fazendo uma cara imaculada e santa.

Lagrimas escorriam pelos rostos. Sentia-me estranha por não ser sensível a validade da vida.

Nos momentos sozinhos, acompanhava-me a lembrança e esta ainda era viva. Bancos no fogão, histórias entre seis bocas mudas.

Lembro com graça de seis pés balançando sem conseguir tocar o chão, esperando a refeição quente. Hoje sempre almoço desacompanhada, hoje fica difícil encaixar minhas pernas de baixo da mesa.

Existem fatos que o tempo não rouba, mesmo assim acordo cedo todos os dias para dizer que eu fui a primeira a ver o sol brilhar ou mesmo a primeira sentir os primeiros pingos de chuva, pondo os dedos para fora da janela. Não me incomodo com as olheiras que este vício me causa, eu gosto de saber que estou viva, com dez ou oitenta anos.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Ouço musica pela manhã. Instrumental, pois meu pensamento tem letras em excesso. Escuto Ravel como se fosse meu próprio coração batendo, acrescentando uma nota cada vez mais forte.

Tomo um banho para espantar o calor. Logo o sinto com mais intensidade. Devo me acostumar com a fervura do verão.

Não há praia em minha atual rotina. Desço e subo escadas com freqüência. A pressão baixa, escondo-me no estoque. Desço as escadas fingindo estar bem.

Aguardo a hora de ir desde que cheguei. Ameaço minha saída todos os dias, para que sintam muita falta.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Chego ao quarto frio no meio da tarde, deixando a bolsa sobre o sofá. Cumprimento meu pai com notável surpresa. Enfim trocamos os turnos.

Ouço a máquina por tanto tempo que sou capaz de ignorá-la

A porta se abre inúmeras vezes. Levo sempre um susto ao ouvi-la bater, como se estivesse fazendo algo errado, e aquilo me imobilizasse.

Vigio a respiração com cautela, sua palidez me desanima. Descubro-me em horas pacatas, sem um relógio por perto. Perco-me em sentimentos turbulentos. A identidade se esvaiu, possui apenas um nome pelo qual atende, abrindo os olhos.

Suas feições doloridas ferem meu espírito. Lembro das vezes em que fugi dos domingos que deveriam ser em família, em que poderia estar sentada ouvindo histórias na beira do fogão.

É inútil remediar memórias involuntárias, são como espasmos de consciência. Olho pelo vidro em busca de aceno de um vizinho, só para não me sentir só.

Migalhas de biscoito caem sobre o estofado. O tédio alimenta a idéia de que o estômago está vazio. Aparece uma formiga que perambula para distrair meus olhos, depois some nas dobras da cortina.

Começa a ficar difícil observar que a noite não avança. Esqueço do horário de verão.

Leio as palavras que escrevi, impregnadas de saudade, ou mesmo de reflexão.

Toda vez que me levanto, ajeito o dedinho torto do pé, em homenagem a sua vaidade.

Há vezes em que seus olhos se abrem, parados, sem reação. O que será que existe na parede branca, que tira a vontade de olhar em outra direção?

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Vi o amor de perto. O tédio foi remediado. Havia mesmo um sentimento, coisa que nunca vi antes. Parecia novela das seis, com direito a gracejos gratuitos.

Viajei sentada sobre a pedra, assistindo o vento brincar com seu cabelo para eu ajeitar depois. A fome nos fez levantar.

Como só havia churrasco pela vizinhança tive que um arranjar algo melhor ao meu paladar. Um sorvete era um motivo para dar sabor ao frio da madrugada.

Levou-me até a pousada rosa. Beijamos no portão. Saiu descalço pela rua de terra, sem saber que eu já ia embora.

Amor de carnaval dura o tempo para lembrar, esperando o próximo chegar para acabar na quarta de cinzas.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Paredes pedem para não ficarem brancas. Mãos enfeitam o tom desbotado; manchando em tamanhos diferentes.

Vejo o tempo passar contando os dedos que quase tocam o teto, penso como alguém subiu ali.

Olho o relógio com ponteiros assimétricos, informando a relatividade das horas. Pego um jornal amassado e tento lê-lo como um homem, sem amassar mais. Meus instintos femininos destroem as dobraduras, logo desisto de dobrar as folhas ao meio, embaralhando os esportes com o jornal da tv. Sono de três horas somadas agitam os foliões que vão para a praia em dia de chuva, para guardar areia no bolso como lembrança além das fotos.

Silêncio na apuração de escola de samba, em contraste com o funk intruso que engole a paz costeira. Dançarinas de rua tremem os postes apoiando-se neles, dançando pela milésima vez o som que não se equaliza.

Competição auditiva. Sinto-me na feira nordestina, com um karaokê em cada barraca típica, tocando Calypso e Legião em menos de um metro quadrado de distância.

Sinto vergonha alheia, constrangida com o efeito do álcool. Brindo (sóbria) um samba raro, descalça, tendo cuidado com os prováveis cacos de vidro, assistindo piranhas travestidas com perucas florescentes, enchimento e saia. Um bom pretexto para sentir como é sentir frio entre as pernas.