quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Sentei no banco da praça quase vazia. Os pombos se alvoroçam ao me fazer companhia. Há tempos não via gatos ali.

Passei um tempo pensando no ano que quase se completa. Não tive oportunidade de respirar neste último semestre, ficou uma sensação de que a vida deu um tempo e me espera para ser renovada ou que terá outra chance de fazê-lo.

Lembrei-me dos fogos na praia; parecia que nunca iriam parar. Uma guerra de luzes e barulhos que enlouquecem os cachorros que ficam momentaneamente mudos.

A rapidez dos fatos contrastou com a vagareza da simplicidade dos meus objetivos. Os livros acompanharam-me durante o ano inteiro. Travei batalhas entre os teoremas, vi coerência entre os recursos humanos e importância de usar músicas como artifícios de memória. Virei minha própria vilã, lutando contra o sono, a fadiga mental e a tpm.

Senti falta dos amigos no mesmo estado, mas eu me ocupava tanto no egocentrismo de me por em primeiro plano que acabava achando besteira me preocupar com isso.

Dizia sim para todos os convites durante o inicio do ano, porém acabava sentindo um remorso ao pensar na concorrência. Tomei conhecimento que bem antes de ser inserida no mercado de trabalho teria que conviver com isso. Passei a dizer não. Somente negava sem dar explicação. Bastava eu lembrar do conteúdo que ainda não dominava.

Busquei minha clausura. Namoros terminados. O foco era só um. Chegava a ser chato saber que eu estaria sozinha sempre. Dava um jeito de pegar uma corzinha para fugir do rótulo pálido os vestibulandos. Acordava muito cedo e ficava lendo. As vezes distraia-me pelo vicio de fazer leitura corporal. Qualquer movimento eu relacionava a física.

Eu entrava em transe quando as provas se aproximavam queria um spa, uma sessão de massagem, qualquer coisa que me relaxasse.

Descabelei-me tantas vezes. Comi como se fosse o último prato, repetindo varias vezes. Por sorte emagrecia limpando a casa nas horas vagas.

Assim o ano se passou, com letras muitos amistosas.

Pensei tudo aqui sentada no banco, e o ano ainda nem acabou. Logo me apaixonarei por um herói épico, ou mesmo por Lusiadas e acordarei somente quando os fogos iluminarem o céu outra vez.

Ele era um garoto novo na cidade e o único emprego que conseguiu foi em um botequim pequeno e fedorento perto de sua casa. O lugar tinha apenas um balcão, várias garrafas de pinga barata, uns velhos pacotes de Ruffles que ninguém pedia e uma pequena estatueta do Humberto Gessinger, de quem o dono era fã.

Trabalhava todas as noites servindo os bêbados. Era sempre a mesma coisa. Os mesmos clientes, as mesmas cachaças e os mesmos pacotes de Ruffles apodrecendo. Já pela manhã, chegava a parte mais difícil: limpar o vômito dos bêbados que sobrava no balcão.

Quando o trabalho ficou insustentável, pediu demissão. Na noite seguinte, foi para o botequim onde trabalhava, sentou-se no balcão e pediu uma pinga. Passou a madrugada bebendo ali. E todas as madrugadas seguintes da sua vida.

Ficava até de manhã tomando aguardante no mesmo botequim onde havia trabalhado. Não porque não houvesse mais nada pra fazer naquela cidade. Mas é que, àquela altura, nada o deixava mais satisfeito do que limpar o próprio vômito.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Lembro-me com clareza do tempo em que havaiana era coisa de pedreiro. Daquela azul e branca, clássica. Hoje eu posso ir a Europa montar uma tenda e viver deste comércio.

O consumo está mudado. Imagine que em tempos distantes os escravos andavam descalços. Hoje uso salto alto para levantar a auto-estima e desestruturar minha coluna.

Vivia tropeçando com minha havaiana lilás. Não sabia que desculpa dar quando ia caindo; culpava até a gravidade. Fingia que saltava todas as vezes, sempre havia um buraco no caminho mesmo.

Recordo-me com orgulho do dia em que comprei a marca concorrente, tirei dos pés e corri descalça, sem algemas ou marcas, apenas uns cacos de vidro.

sábado, 24 de novembro de 2007

Sentada no banco mais alto do ônibus avisto o morro e seus barracos. Não chego a entrar em suas vielas ou passear por suas escadas, apenas observo o que não conheço nem critico.

Vejo fotos de vereadores expostas no alto e fico pensando que tipo de comida, roupa ou regalia o morador teve para expor aquele rosto sorridente e seus números.

O homem sorridente da foto só está em imagem, eu mesma nunca vi um de perto, acho as vezes que todos usam perucas e dentes postiços. Todos têm uma fina estampa que a realidade deve consumir.

È como um pesadelo, passeio na rua com a impressão de ser observada por todos os olhos de plástico. Torço para que a próxima chuva arranque todas aquelas cabeças, mas que não tapem os bueiros.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Resolvi lutar pelos meus direitos. Quero beijar em público, andar de mãos dadas; nada mais que isso.

Saí na rua para conferir a Parada Hetero. Em um primeiro momento achei divertida a iniciativa, mas não contava com a surpresa. Em uma bela tarde de domingo, havia umas cem pessoas, e eu no meio do aglomerado reduzido. Senti-me tão sozinha.

Voltei para casa lamentando a solidão. O mundo era um arco íris e eu deveria me conformar com isso, reduzindo minhas demonstrações de amor explicitas.

Pensei que seria só esquecer essa história por algum tempo, mas as eleições chegaram. Depois do Guaragay eu poderia esperar por tudo, menos isso. Todos unidos jamais seriam vencidos. Em campanha, eu podia ver todas as cores no palanque. Eu perguntava o que havia de mais naquele homem de cabelos bem cortados e terno impecável. Ninguém me respondia com coerência, diziam ser um deles e bastava dizer isso.

Depois de eleito, vi meus direitos cerceados, minhas ações eram sempre pequenas, insignificantes. Os banheiros eram unisex, eu tive que aprender a usar o mictório contra a minha vontade, e usar calça até para dormir.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Ouço gritos pelo caminho, acabo escondendo-me atrás de um tronco retorcido. Logo me encontram, encolhida atrás da esguia árvore.

Aponta-me o dedo e começa a gesticular. Suas unhas sujas ameaçam invadir minhas narinas, tamanho o entusiasmo de suas mãos. Nada posso fazer a não ser ouvir o sermão.

Voltei para casa cabisbaixa, pensando no que havia feito. Nada. Meu silêncio custou caro desta vez. Faltava apenas me sacudir, ou me esbofetear,

Aprendi a falar sempre, sorrindo em concordância. Tudo para manter meu nariz a salvo.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Impulsionado pela violência explícita, Bruno não tinha medo de correr perigo. Foi ao cinema na estréia de Tropa de Elite e aplaudiu de pé seus tiros cinematográficos, sentia que alguma coisa mudara. Uma transformação ocular havia ocorrido.

Chegou ao trabalho falando grosso, Bruno mudara muito na última semana, não foi somente ele, o Rio e suas beldades davam lugar a chuva e as ameaças do governador de ser severo em todas as circunstâncias.

Bruno sentava para comer um sanduíche no minuto que sobrava para o almoço, tinha um olhar vazio, sem nenhuma expectativa visível, nem fome aparentava ter. Sua frieza assustava a garçonete que não mais abria o sorriso na hora da despedida.

Calado frente ao computador alternava os protocolos com o estudo dos calibres. Trocava de página quando alguém passava pela sua sala. Queria fazer uma surpresa! Ser herói a qualquer custo.

Achava que era uma ameaça. Disperso, quase atropelava as senhoras na faixa de pedestre. Egoísta, não dividia a cama com o cachorro. Era um louco disfarçado.

Depois de um mês de estudo, comprou uma pistola usada. Calibre 35/36, como nos antigos filmes. Saiu de casa com um estranho sorriso no rosto.

Ironicamente naquela manhã seu carro soltou fumaça por todos os lados. Não teve tempo de averiguar o problema, apenas sacou a arma e a colocou na pasta estufada de papéis. Foi até o ponto imaginando o atraso que cometeria.

Passado algum tempo o ônibus abriu suas portas barulhentas. Bruno foi sentar na beira do banco, egoísta como era querendo a solidão do assento vago. Um homem entrou pela porta da frente, sacou uma arma igual à de Bruno. Tamanha era a inveja dele, que resolveu tirar satisfação. O vendedor havia garantido que era modelo único. Levantou-se rispidamente, foi o tempo de sentir uma ardência nas costas.

Eram duas réplicas do seu precioso artefato. Um homem havia pulado a roleta, portando uma arma igual a do comparsa. Bruno agonizava de inveja, não era pelo sangue que corria. O tiro saiu pelo lugar errado, ele queria ter sido o primeiro, mataria todos os que subissem no ônibus com gosto. Com a fome e a vontade que não teve durante o almoço.

Não teve jeito! Bruno resolver ser um astro. Posou de inocente, fez cara de santo e foi se encolhendo no chão. Virou mocinho atirando em bandido na hora do jornal nacional. No fogo cruzado ninguém reconheceu os rostos então enterraram os corpos na mesma cova. Ninguém soube de quem era quem.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Como um mutum, ponho-me a tagarelar durante a noite. Falo com o criado-mudo, conto-lhe como foi o dia.

Ando muito hipocondríaco. Minhas síndromes têm época, vêm e vão sutilmente, logo descubro uma fobia e torno-me insosso enclausurado em casa, mantendo diálogos com o rádio.

Meus amigos são médicos, todos muito bem apessoados. Aos poucos leigos que arriscam uma visita, aconselho logo um médico e arranjo uma doença para cada olheira que adentra minha porta.

Tenho medo da vida, e não é de morrer. Viver é como ir ao supermercado, a dúvida paira entre escolher o mais saboroso ou o mais saudável. Acordar sugere que o dia começa, mas ninguém diz quando a validade termina.

Moro sozinho, talvez seja esse meu antígeno, sou um corpo estranho entreolhado pelo espelho. Acho que minhas rugas causam aversão. Já que não saio de casa, todos preservam a memória da minha cara lisa, sem pestanas grisalhas ou manchas de sol.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Sonhei que eu beijava uma mulher! Levei um susto ao recuperar a recordação. Por sorte ninguém consegue saber o que se passa enquanto dormimos.

Fiquei meio acanhada, tentando descobrir se havia alguma fantasia infiltrada no pensamento. Só conseguia imaginar bombeiros sarados, o Cloney estirado numa cama king size. Coisas bem heterossexuais faziam parte do meu imaginário, nem menage passava perto.

Comecei a pensar como gay, sociologicamente falando. Foi como se um chip tivesse sido implantado em minha cabeça. Fui raptada e uma intimidadora luz iluminava meu rosto, tentando arrancar minhas palavras. Percebi que minha teoria devia fazer sentido.

Era lógico pensar que as passeatas gays têm vínculo com o governo. Tão logo dominarão o mundo, controlando a natalidade e mantendo a renda em meia dúzia de mãos.

Calaram-me com alguns milhões de dólares por isso hoje passo férias em Guantanamo.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Minha mãe sempre me proibiu de ir a parques de diversão, dizia que eu deveria estar grandinha para essas coisas. Nem chantagem emocional resolvia.

Vi meus colegas de escola falando sobre a roda gigante enquanto eu pensava que poderia cair lá de cima, já que mamãe sempre fazia um escândalo contando até nos dedos dos pés os perigos lúdicos. Criei uma fobia até pela roleta da entrada.

Agora que sou mãe, meus filhos puxam minha blusa e falam no ouvido que querem um passeio. Não há convite da escola para irem acompanhados pelas professoras bem aventuradas. Tento achar desculpa para não ir, prefiro que não saibam o que é medo, fobia ou coisas assim que agente inventa e que nada tem a ver com dormir de luz acesa.

Tomei coragem e levei meus pequenos para o parque da cidade. Os algodões doces tentavam me acalmar com suas cores de anilina. Tentei desviar seus olhinhos da grande roda até a hora em que suas mãos apontaram para o que direção eu temia.

Meus pés tremeram apenas. Respirei fundo e fiquei pensando que não poderia ser tão ruim assim. Sentei na cadeira enferrujada, apertando de leve as pequeninas mãos. Tudo começou a tremer enquanto eu pensava em desistir.

O momento mágico desvendava minha alegria. Eu parecia uma criança perplexa com a adrenalina de tirar os pés do chão.

Minhas filhas desceram do grande brinquedo dizendo que não teve graça, afirmando que era quase andar de ônibus, passando pelo quebra-molas. E eu que pensei ter coragem...