quinta-feira, 29 de maio de 2008

Eu vestia um sapato diferente em cada pé, e os cruzava como nós fazíamos, para não me sentir tão só.

Repeti nossa rotina por alguns dias, até me deparar com a severa notícia. Da morte não se tem volta.

Fiquei com o armário bagunçado como lembrança. Tive medo de intervir no seu gênio exposto em desarrumação. Não possuo o direito de deixá-la como eu gostaria que ela fosse.

Esqueça! Não caibo no seu porta-luvas. Não posso mais correr o risco das câmeras do estacionamento me alcançar.

Eu quis! Ainda há tempo de não querer mais.

Sento-me no banco da frente, e ali fico até chegar no portão.

Só existo quando me dispo pela metade, ou quando a escuridão me cobre e a língua se torna uma mão.

Falei a verdade e mesmo assim sinto algum pesar em minha consciência. Disse na cara mesmo, sem qualquer escrúpulo. Se eu não dissesse assim, naquela hora, não contaria nunca; ficaria com a dúvida, e a dúvida incita o erro.

Antes que eu percebesse as palavras haviam saltado da língua. Não me lembro ao certo que argumentos eu usei, mas fui convincente apesar de contar anomalias que preferiria ser apenas boato.

Deve ter doído ouvir o que a suspeita não desvendava por si só. Eu tive que dizer. Convenci-me que a verdade é proteção, um arregalar dos olhos com lentes de grau. Há histórias difíceis de se acreditar, eu apenas contei minha versão que pode ser interpretada errada.

Uma mentira bem dita, aquela que é melhor de escutar, cai bem como verdade.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Meu sonho me perturba. Durmo, sonho e bato no meu siamês; achando que abelhas realmente estão me perseguindo.

Não sossego um segundo enquanto sonho. Corro, seco as paredes, apareço no Faustão.

Reconheço a loucura que mora dentro de mim. Há sempre uma boa explicação. O bom é que nunca sonhamos a mesma cena, só ocorria quando eu era criança e imaginava formas geométricas enormes, alternando os tamanhos, depois, mais quando velha, sonhava que perdi os dentes e corria para o dentista para consertá-los. Sim, acho que meus medos mais internos se repetem nos momentos de angústia.

Descobri que dormir me cansa. Acordo em sobressalto, quase despencando no beliche, quebrando pela segunda vez o nariz, sem bichinhos de pelúcia para amortecer minha queda.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Por favor, não acenda todas as luzes de uma vez. Preciso pôr uma roupa antes de sair da cama. Não diga que está com pressa, eu não preciso saber. Ainda preciso de um banho.

Antes de fechar a porta, dê-me um beijo para eu saber como é, sem ver seus olhos se fechando devagar.

Apertei com força o interruptor do banheiro, por mau contato, não acendeu. Tive que ficar no escuro, vendo apenas o branco dos meus olhos refletidos. Consigo vê-los através dos óculos como se eles não existissem.

Derrubo as escovas de dente. Continuo pressionando o interruptor para ver qual delas é a minha. Sem luz não sei o que me pertence, o branco dos meus olhos não vê.

sábado, 10 de maio de 2008

Havia descido para tomar um café, com o pretexto de trocar uma nota de cinqüenta reais.

Foi bom andar de elevador, com uma maca comigo, melhor foi ver que ela estava vazia e mais alguém tinha ido embora; só não sabia dizer se saiu vivo, ou morto.

Fiquei um tempo na recepção, observando os poemas de Drummond colados na parede, combinando com a cor do sofá. Acho que quadros estão fora de moda, parece mais fácil colar adesivos e depois pintar por cima quando já estiverem ultrapassados também.

Desperdiço alguns minutos para frear meu pensamento. Tive vontade de perguntar de que forma a maca havia ficado vazia. Temi ouvir o que não queria. Não que eu temesse a morte, mas tenho mesmo curiosidade.e pudor ao mesmo tempo.

Com o dinheiro trocado, não sabia onde colocá-lo, sem ter bolsos no vestido. As notas de vinte reais (apesar de apenas duas) atraiam mendigos como se o dinheiro se multiplicasse
, como se um deles pudesse puxar uma delas, sem que eu notasse.

Eu mesma precisava de dinheiro, precisava voltar para casa, sem saber o porque. Dependendo do transporte público, tive que esperar por mais de meia hora por uma condução. Olhei para a bolsa, vi que havia esquecido o celular no quarto. Queria pedir para o motorista me esperar, mas tive vergonha de dizer tamanha infâmia.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Perto do dia das mães, permito-me um tempo para reflexão sobre o bem que faço a mim mesma sendo voluntária em um orfanato. Percebo que ao crescer, perdemos nossa essência, encontrando sempre um motivo para nos sentir inferiores por qualquer defeito que tenhamos. Lidar com crianças me fez rever o sentido simples do que é ser feliz

Não há um dia em que eu não pense nas minhas crianças. As chamo de “minhas” por realmente querer que fossem.

Nunca quis ser mãe de alguém que não proveio do meu útero, mas ser mãe dita algo muito mais abrangente do que gerar um feto. Ser mãe é fazer escolhas por alguém, torcendo para que isso seja realmente bom no futuro.

Quando eu vejo uma porção de crianças juntas, não penso que sofrem por falta de atenção, e sim, acredito que enxergam a solidão de outra forma.

Nos últimos dias venho tentando decifrar em que momento a felicidade deixa de ser infantil. Lembro-me de perder os dentes e querer mostrar à todos o buraco que ficou no mesmo lugar, fazia isso sorrindo, mostrando os dentes que restavam. Caso esse fato acontecesse hoje, não sei se teria coragem de sair de casa.

Alterno duas crianças no colo, finjo que não pesam tanto, para que caibam em meu afago. Minha menina brinca de pegar meu brinco e correr, pendurando a haste no orifício do ouvido externo. Da vez em que a perguntei o porquê de não usar brincos, ela me disse que sangraria e deveria doer, pensei em lhe dar brincos de pressão, mas as outras meninas ficariam com ciúmes.

Enquanto eu a perseguia, torcia para que ela não crescesse, para que nunca perdesse a coragem de encarar o mundo. Por um instante fiquei triste ao lembrar da minha citação sobre dentes, eu seria muito menos satisfeita se não pudesse ver aquela arcada, mas depois achei que na verdade o que me emocionava era o som da felicidade, pois, muitas vezes distante dela eu consegui ouvir o som da sua gargalhada, me inspirando. Queria não apenas lembrar.

Acordo com vontade de dar uma vida melhor à menina que me fez mais humana que me faz fingir ter uma pluma nos braços, apesar dela já estar crescendo. Temo que ela cresça e ache bobagem o que eu digo agora, mas preferiria que ela não crescesse, e achasse para sempre que comer cajá do pé é a oitava maravilha do mundo, que achasse que para usar brinco não precisa deixar cair uma única gota de sangue. Ela tem a solução simples para tudo o que eu já enxerguei e hoje apenas vejo.

sábado, 3 de maio de 2008

Criei minha própria armação, para dizer que foi fácil me satisfazer e um dia assumir que foi um erro o medo de tentar.

Muitas vezes acordei com a impressão de ter o peso de mais de dez anos sobre os ombros, contrapondo ás vezes em que acho que vou viver mais de cem anos e a pressa não faz parte das minhas escolhas.

Flagro-me acuada por estar sozinha, sem ter a quem recorrer, sem ter amigas para confidenciar o que sinto, o que temo.

Foi bom te ver de novo, me perguntar se o divertimento é valido. Sinto que brinco comigo, não com o outro, meu corpo se contenta enquanto minha mente se embaralha sozinha.

Sempre fiz questão de estar sozinha, hoje não sei dizer se é certo achar sempre que tenho razão. Fico sozinha e dependente por mais que hesite que isso aconteça.

Ontem vi nos olhos de um outro homem uma ternura que há muito não me tocava. Não sabia se quer o seu nome, nem se ele realmente olhava para mim, ou se era o que eu gostaria que ele fizesse.

Temo trocar o prazer pela dúvida. Meu comodismo vai contra todos os meus princípios, não tenho o que perder. Tenho cem anos pela frente, gozar do presente parece ser assustador.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Nos tornamos peritos, esperando ansiosos por uma nova prova. Incriminamos um casal de uma vez.

Estamos todos exaustos por um mês inteiro de investigação e reconstituições. Inúmeros policiais afirmam o que a perícia discorda, nós acusamos.

Ninguém procura a causa, apenas avalia os fatos. Questiono a liberdade de tirar a vida de uma criança atirando-a pela janela, como se a dessem liberdade, como se da queda ela se tornasse um anjo, que voasse para outro lugar.

Levamos o trabalho para casa, jantamos assistindo. Muitas opiniões em todos os canais, apenas a mesma discussão. Acho mesmo que tenho razão quando procuro solução para o problema dos outros, são maiores que os meus.