domingo, 15 de junho de 2008

Ouço um piano imaginário quando toco com os pés a calçada. Volto da praia descalça, vejo as teclas no calçadão preto e branco de Ipanema. Ando com ritmo até o piso só ter uma cor.
As folhas me acompanham virando para o lado que eu vou. A brisa me expulsa até eu virar a esquina e o vento não ter força para me levar.
Os turistas coloridos confundem o inverno com o verão, trazendo hibiscos em suas camisas de botão. Também não combino as roupas desta estação, desfilando de biquíni e canga nas horas impróprias enquanto alguns usam ternos.
Passo mais tempo aqui; conheço as ruas pelo nome, mas ainda faço bafo na vitrine inventando moda de querer levar cada estampa para casa como lembrança.

Olhou-me dentro dos olhos. Estava vazio de consciência, vazio de som.

Por um segundo hesitei não ir. Aquele silêncio era despedida; de mim ou dele mesmo. Teria ele mudado? Não me levava nos olhos.

Mantive o ar sereno, estalei um beijo oco na boca, torcendo para não ser a última vez.

Saí do carro com a sensação que o havia perdido. Refleti sobre meus erros, pequenos demais para deixá-lo daquele jeito. Dei a volta sem entrar em casa. Num súbito momento tentei encontrar a felicidade dentro dos últimos dias. Já não era um sentimento bom. Pensei em ficar sozinha antes que ele mudasse, mas quis enganar a vontade pensando em orgasmos verticais, mãos dadas e telefone tocando a música que eu escolhi para saber que era a voz dele que eu escutaria.

Eu havia ido embora muito antes, e agora me fazia de vítima. Recompus a idéia, trocava de papel com ele para saber se eu também o encarava com um vago olhar e descobri que era o reflexo do que eu estava sendo. Fomos embora juntos.

sábado, 14 de junho de 2008

Acordou entre a caçamba de lixo e o meio fio. Estava largado, anestesiado pelo etílico que não o deixava acordar nem mesmo com o sol rachando as pálpebras.

Podia ouvir o roncar do estômago. Parecia um cretino, lerdo. Acordava com o barulho da fumaça entrando pelas narinas. Tossia como um tuberculoso.

Mimetizava com o asfalto, sujo como a calçada. As calças eram feitas de buracos de diversos tamanhos, em qualquer outro corpo faria sucesso, mas não havia pernas suficientes para preencher o vão do tecido gasto.

Roubaram os acentos do meu dicionário! Levaram a fonética junto com a regionalidade.

Uniram os países em pedaços, mas nenhum se reconhece na nova forma de escrever a história.

Fragmentaram as diferenças. È bom ter origem, é dela que tudo se modifica. Imagine hoje falar latim, contar piada com palavras gigantes. Não faz sentido fazer livro se ninguém vai ler.

O Aurélio vai ser extinto? As crianças realfabetizadas? Tempos verbais simplificados?
Inteligência burra! Cortar palavras em país de neologismo. Cortaram árvores à toa. Dicionário novo enfeita estante.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Eu quis descrever a saudade e seus reflexos, até alguns sintomas. Altos e baixos, sobre o egoísmo de querer você para mim, com a sensatez de que não seria certo.

Eu disse adeus como um até breve. A despedida pareceu corriqueira e tão logo seria finita, com um previsível sorriso amistoso anunciando um novo dia. Dessa vez a espera é longa e merecida.

O valor das coisas varia com a distância. A lei da oferta e da procura parece encaixar-se perfeitamente neste perfil. É mesmo caro fazer interurbano, mas somente a voz parece não preencher o vazio, muito menos supre o saudosismo.

As tardes são longas como nunca foram. É adequado ressaltar, que não perco o tempo, somente o sono com a ausência. Há longos anos pela frente para dividir a cama, entrelaçar os sonhos ou realizá-los.

Eu estava psicologicamente preparada para algumas semanas. Estava completamente enganada em poucos dias.

Facilmente um sentimento nos faz reféns. Uma chantagem musical, ou uma tortura telefônica seria o bastante para cair em pranto. Eu sempre achei o choro perda de tempo; preferi somar as lembranças para sentir de perto as sensações. Elas ainda são frescas.

Antes de abrir os olhos e ir logo saltando da cama, desejo com tanta vontade sua felicidade plena, que me abasteço de tão nobres sentimentos que acabam por me beneficiar também. Aquelas lindas flores eu dedico a você. O cheiro de dama da noite remete a uma nostalgia passageira. Os vestidos que usei para estar à sua altura parecem carregar seu cheiro para onde quer que eu os leve. São doses homeopáticas da sua companhia.

Como em uma prece, torço para que as horas sejam relativas, tendo a missão de findar a saudade do ninho e ao mesmo tempo cabendo o encargo de correr tão rápido para não transformar a saudade que sinto em melancolia.

domingo, 8 de junho de 2008

È carta fora do baralho. Aposte suas fichas no que crê ter valor. Crie valores tão relevantes que te impulsione a executar tal fato. Seja civilizado a ponto de mudar de calçada. Um compasso que mira o bom senso um a um. Um coração que agoniza preso pelas amarras que lhe deram. Delatando que a maldade não tem limites, e que alcança a anunciação.
Pobres aqueles que acham graça no estado deplorável do paradoxo de exigir respeito cometendo o erro de driblá-lo com tanto afinco.
Desejo em pranto que as coisas tenham mais valor, que valha a pena exorcizar as banalidades que atravessam nosso caminho. Que assim seja, diferente da imagem, do reflexo funesto que perturba meus dias.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Aninhe-se em meu corpo e grite!
O medo não pode impedir o ar de passar. Antes que lhe sufoque, ponha-o para fora, ou ele se entranha dentro do seu corpo.
Não minta! Seus olhos já não estão atentos, todo movimento brusco arregala suas pupilas. Não tenha medo de dizer.
Em cada instante que passa, estar parado assusta. Será que ainda lembra que prometeu me proteger? Quem cuida de você?
Grite! Não comigo! Ponha para fora o silêncio, a vontade de dizer quando a hora se torna imprópria. Ainda escuto você! Mas você acredita no que ouve?

domingo, 1 de junho de 2008

Há dias em que acredito que a música mora dentro de mim. Cada acorde que imagino ganha forma em minha voz miúda. Desconheço o que me move desta forma. Talvez eu me decifre em melodia, entre agudos e graves.
Gosto de sotaque do nordeste, sem dar importância se é minha origem, apenas gosto. Eu não pronuncio as vogais como soam onde vivo, ou de onde minha genética surgiu. Canto as palavras.
Em momento algum disse que cantava bem. Somente em dias inspirados, sambo ao som de Maria Rita.
Os sábados são de festa. Encaixo algum refrão para tal conversa. E quando os declamam, parecem ter sido feitas por mim. A música já não tem dono.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Eu vestia um sapato diferente em cada pé, e os cruzava como nós fazíamos, para não me sentir tão só.

Repeti nossa rotina por alguns dias, até me deparar com a severa notícia. Da morte não se tem volta.

Fiquei com o armário bagunçado como lembrança. Tive medo de intervir no seu gênio exposto em desarrumação. Não possuo o direito de deixá-la como eu gostaria que ela fosse.

Esqueça! Não caibo no seu porta-luvas. Não posso mais correr o risco das câmeras do estacionamento me alcançar.

Eu quis! Ainda há tempo de não querer mais.

Sento-me no banco da frente, e ali fico até chegar no portão.

Só existo quando me dispo pela metade, ou quando a escuridão me cobre e a língua se torna uma mão.

Falei a verdade e mesmo assim sinto algum pesar em minha consciência. Disse na cara mesmo, sem qualquer escrúpulo. Se eu não dissesse assim, naquela hora, não contaria nunca; ficaria com a dúvida, e a dúvida incita o erro.

Antes que eu percebesse as palavras haviam saltado da língua. Não me lembro ao certo que argumentos eu usei, mas fui convincente apesar de contar anomalias que preferiria ser apenas boato.

Deve ter doído ouvir o que a suspeita não desvendava por si só. Eu tive que dizer. Convenci-me que a verdade é proteção, um arregalar dos olhos com lentes de grau. Há histórias difíceis de se acreditar, eu apenas contei minha versão que pode ser interpretada errada.

Uma mentira bem dita, aquela que é melhor de escutar, cai bem como verdade.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Meu sonho me perturba. Durmo, sonho e bato no meu siamês; achando que abelhas realmente estão me perseguindo.

Não sossego um segundo enquanto sonho. Corro, seco as paredes, apareço no Faustão.

Reconheço a loucura que mora dentro de mim. Há sempre uma boa explicação. O bom é que nunca sonhamos a mesma cena, só ocorria quando eu era criança e imaginava formas geométricas enormes, alternando os tamanhos, depois, mais quando velha, sonhava que perdi os dentes e corria para o dentista para consertá-los. Sim, acho que meus medos mais internos se repetem nos momentos de angústia.

Descobri que dormir me cansa. Acordo em sobressalto, quase despencando no beliche, quebrando pela segunda vez o nariz, sem bichinhos de pelúcia para amortecer minha queda.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Por favor, não acenda todas as luzes de uma vez. Preciso pôr uma roupa antes de sair da cama. Não diga que está com pressa, eu não preciso saber. Ainda preciso de um banho.

Antes de fechar a porta, dê-me um beijo para eu saber como é, sem ver seus olhos se fechando devagar.

Apertei com força o interruptor do banheiro, por mau contato, não acendeu. Tive que ficar no escuro, vendo apenas o branco dos meus olhos refletidos. Consigo vê-los através dos óculos como se eles não existissem.

Derrubo as escovas de dente. Continuo pressionando o interruptor para ver qual delas é a minha. Sem luz não sei o que me pertence, o branco dos meus olhos não vê.

sábado, 10 de maio de 2008

Havia descido para tomar um café, com o pretexto de trocar uma nota de cinqüenta reais.

Foi bom andar de elevador, com uma maca comigo, melhor foi ver que ela estava vazia e mais alguém tinha ido embora; só não sabia dizer se saiu vivo, ou morto.

Fiquei um tempo na recepção, observando os poemas de Drummond colados na parede, combinando com a cor do sofá. Acho que quadros estão fora de moda, parece mais fácil colar adesivos e depois pintar por cima quando já estiverem ultrapassados também.

Desperdiço alguns minutos para frear meu pensamento. Tive vontade de perguntar de que forma a maca havia ficado vazia. Temi ouvir o que não queria. Não que eu temesse a morte, mas tenho mesmo curiosidade.e pudor ao mesmo tempo.

Com o dinheiro trocado, não sabia onde colocá-lo, sem ter bolsos no vestido. As notas de vinte reais (apesar de apenas duas) atraiam mendigos como se o dinheiro se multiplicasse
, como se um deles pudesse puxar uma delas, sem que eu notasse.

Eu mesma precisava de dinheiro, precisava voltar para casa, sem saber o porque. Dependendo do transporte público, tive que esperar por mais de meia hora por uma condução. Olhei para a bolsa, vi que havia esquecido o celular no quarto. Queria pedir para o motorista me esperar, mas tive vergonha de dizer tamanha infâmia.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Perto do dia das mães, permito-me um tempo para reflexão sobre o bem que faço a mim mesma sendo voluntária em um orfanato. Percebo que ao crescer, perdemos nossa essência, encontrando sempre um motivo para nos sentir inferiores por qualquer defeito que tenhamos. Lidar com crianças me fez rever o sentido simples do que é ser feliz

Não há um dia em que eu não pense nas minhas crianças. As chamo de “minhas” por realmente querer que fossem.

Nunca quis ser mãe de alguém que não proveio do meu útero, mas ser mãe dita algo muito mais abrangente do que gerar um feto. Ser mãe é fazer escolhas por alguém, torcendo para que isso seja realmente bom no futuro.

Quando eu vejo uma porção de crianças juntas, não penso que sofrem por falta de atenção, e sim, acredito que enxergam a solidão de outra forma.

Nos últimos dias venho tentando decifrar em que momento a felicidade deixa de ser infantil. Lembro-me de perder os dentes e querer mostrar à todos o buraco que ficou no mesmo lugar, fazia isso sorrindo, mostrando os dentes que restavam. Caso esse fato acontecesse hoje, não sei se teria coragem de sair de casa.

Alterno duas crianças no colo, finjo que não pesam tanto, para que caibam em meu afago. Minha menina brinca de pegar meu brinco e correr, pendurando a haste no orifício do ouvido externo. Da vez em que a perguntei o porquê de não usar brincos, ela me disse que sangraria e deveria doer, pensei em lhe dar brincos de pressão, mas as outras meninas ficariam com ciúmes.

Enquanto eu a perseguia, torcia para que ela não crescesse, para que nunca perdesse a coragem de encarar o mundo. Por um instante fiquei triste ao lembrar da minha citação sobre dentes, eu seria muito menos satisfeita se não pudesse ver aquela arcada, mas depois achei que na verdade o que me emocionava era o som da felicidade, pois, muitas vezes distante dela eu consegui ouvir o som da sua gargalhada, me inspirando. Queria não apenas lembrar.

Acordo com vontade de dar uma vida melhor à menina que me fez mais humana que me faz fingir ter uma pluma nos braços, apesar dela já estar crescendo. Temo que ela cresça e ache bobagem o que eu digo agora, mas preferiria que ela não crescesse, e achasse para sempre que comer cajá do pé é a oitava maravilha do mundo, que achasse que para usar brinco não precisa deixar cair uma única gota de sangue. Ela tem a solução simples para tudo o que eu já enxerguei e hoje apenas vejo.

sábado, 3 de maio de 2008

Criei minha própria armação, para dizer que foi fácil me satisfazer e um dia assumir que foi um erro o medo de tentar.

Muitas vezes acordei com a impressão de ter o peso de mais de dez anos sobre os ombros, contrapondo ás vezes em que acho que vou viver mais de cem anos e a pressa não faz parte das minhas escolhas.

Flagro-me acuada por estar sozinha, sem ter a quem recorrer, sem ter amigas para confidenciar o que sinto, o que temo.

Foi bom te ver de novo, me perguntar se o divertimento é valido. Sinto que brinco comigo, não com o outro, meu corpo se contenta enquanto minha mente se embaralha sozinha.

Sempre fiz questão de estar sozinha, hoje não sei dizer se é certo achar sempre que tenho razão. Fico sozinha e dependente por mais que hesite que isso aconteça.

Ontem vi nos olhos de um outro homem uma ternura que há muito não me tocava. Não sabia se quer o seu nome, nem se ele realmente olhava para mim, ou se era o que eu gostaria que ele fizesse.

Temo trocar o prazer pela dúvida. Meu comodismo vai contra todos os meus princípios, não tenho o que perder. Tenho cem anos pela frente, gozar do presente parece ser assustador.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Nos tornamos peritos, esperando ansiosos por uma nova prova. Incriminamos um casal de uma vez.

Estamos todos exaustos por um mês inteiro de investigação e reconstituições. Inúmeros policiais afirmam o que a perícia discorda, nós acusamos.

Ninguém procura a causa, apenas avalia os fatos. Questiono a liberdade de tirar a vida de uma criança atirando-a pela janela, como se a dessem liberdade, como se da queda ela se tornasse um anjo, que voasse para outro lugar.

Levamos o trabalho para casa, jantamos assistindo. Muitas opiniões em todos os canais, apenas a mesma discussão. Acho mesmo que tenho razão quando procuro solução para o problema dos outros, são maiores que os meus.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Ele saiu, tive a certeza de que nunca mais o veria. Tive vontade de voltar, não para tê-lo, mas para deixar claro que é necessário viver só.

A felicidade existe se for compartilhada, imagine tê-la só para você, dando nome ao próprio prazer. Imagine acordar cedo, sem reclamar da hora, sem ter que dar motivo. Dormir a tarde tendo o compromisso com o próprio sono, e só.

Eu me pergunto se minha conclusão faz sentido; se esse egoísmo poderia lhe ferir. Lembro dos retratos, recados em uma caixa em cima do armário, junto com outras juras de amor, todas sem validade. Consigo percorrendo o olhar, definir as suas lembranças.

Conteria minha decisão, iria até sua porta, com a certeza que não teria coragem de pedir que viva tudo novamente, como se eu mesma pudesse sentir, mesmo que não pudesse mais, mas era o que lhe fazia feliz.

domingo, 20 de abril de 2008

Minha pele parecia carregar um cheiro intruso. Minha cabeça trazia recordações constantes que davam vontade de voltar a chorar.

Um só banho não deu conta, sentia-me imunda, imaginando aquelas mãos me alisando. Quase tirava a superfície da pele, de tanto esfregar, arrancando os dedos fora, lacerando os olhos famintos.

Sentia nojo ao lembrar. Nojo de mim mesma, por permitir que a cena acontecesse, apesar de tantos avisos.

De tanto medo, fiquei imóvel, sem saber se alguém escutaria minha voz, caso eu gritasse. Sem saber se me calaria quando me visse diante do espelho, com olhos de raiva ou pavor.

Fiquei imaginando o que sua força poderia me obrigar. Fui diminuindo, diminuindo, ficando cada vez mais vulnerável, mal cabia no vestido.

Ouvindo suas confissões, eu tinha vontade de lhe arrancar os olhos fora. Imaginei o que eles percorriam quando me ensinava um novo termo. Costuraria sua boca, ao saber que os elogios eram sujos de desejo, diferente da candura que tinha quando os pronunciava antes. Algemaria as mãos que um dia me tocaram as mãos, querendo acariciar meu seio.

Qualquer olhar me detinha depois do fato. Tinha a impressão que todos queriam me despir a roupa. Conservava os olhos baixos pra que ninguém notasse, só deixava transparecer as lagrimas que insistiam em deslizar sobre o rosto.

sábado, 19 de abril de 2008

Perdia o controle das mãos. Trêmulas, queriam prender tudo com os dedos, mas faltava-lhe força. Nem mesmo as lembranças ele conseguia segurar.

Inventava uma nova infância, trocava o que fez pelo que gostaria de ter feito.

Devia ser bom ter a liberdade de possuir a vida que se tem vontade. Novos amores, grandes feitos. A tristeza não tem espaço, lágrimas apenas de sono. Nenhum pensamento seria tolido pela moral, nada que aponte se mentiras não são boas.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Sou refém dos meus óculos. Sinto tamanha insegurança ao não tê-los por perto.

Parece que os carros vem mais rápido quando desfoco a luz do farol. Ganho alguns anos pela armação.

Protejo meus olhos, enfeito o contorno das sobrancelhas. Acho todos os elogios falsos.

Há dias em que não gosto de enxergar bem. Gosto de fingir que não vejo, para não cumprimentar ninguém.

Quando devo dar um beijo em cada bochecha, gladiamos armações, debatendo uma contra outra, dando uma desagradável sensação.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Não sei bem qual idéia resolveu sugerir a lembrança para que ela retornasse. Subitamente lembrei-me dos tempos de menina, em que podia acampar em qualquer quintal, sentindo a aventura acelerar o peito.

Logo em seguida, surgiu a dúvida. Com quase certeza a vaidade que tenho hoje não me permitiria momentos tão felizes.

A recordação me trouxe a cena de uma barraca armada no alto de um morro, não muito elevado. Acordamos lá em baixo, sem saber o que havia nos carregado. Ainda de meia, tentamos encontrar os pares dos sapatos que não desceram conosco. Nem sei porque essa lembrança é tão viva, mais presente que os cantos na fogueira que traziam lágrimas. O calor do fogo enxugava algum sentimento em mim.

Não sei se hoje eu encontraria tanta graça em desbravar com um facão em punho um amontoado de bambus. Não sei se teria medo da escuridão dos pernoites.

Pergunto-me o que me levou esse espírito. Simultaneamente temo perder o que me resta de precioso. Espero que o tempo não leve também meu sorriso fresco.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Era um mito para mim. Aparecia somente na televisão, por medida do governo. A situação era tão alarmante que os turistas pararam de descer no aeroporto, por medo de esmorecer durante a viagem.

Para mim, era uma lenda, uma história com moral no final, até que o encontrei, bem na minha sala.

Tinha pernas delgadas, listradas. Fitei sua magreza, seu esqueleto explícito. Tirou-me a reação. Fiquei pensando se ele já estava ali; se já havia me picado no silenciar da noite, sem que eu percebesse, ou se decidira percorrer minhas paredes sem que eu o notasse.

Eu, que quando matava formigas por distração, ficava em silêncio por quase dez minutos, em sinal de compaixão; naquele momento tive que deixar a bondade de lado. A dúvida se ele estava contaminado ou não, não deixara outra saída.

Sem que ele percebesse, fucei em todos os armários a raquete de choque. Era uma medida de emergência.

Travei uma batalha tentando achar uma pilha de última hora. Tirei as que estavam no controle remoto, já no fim de sua carga. Matei-o com um zunido só. Caiu perto da prateleira. O tapete o amparou. Era um inocente pernilongo. Não tive dengue...

segunda-feira, 24 de março de 2008

Minha infância foi típica. Filho único, brincava de inventar amigos. Dava um nome a cada um deles e esperava que pelo menos um tivesse a coragem de sentar comigo no balanço para pôr as pernas para sentir o vento entrando pelo vão da calça, enchendo as pernas como se dali por diante, pudéssemos voar.

quarta-feira, 19 de março de 2008

No elevador não tiveram tempo de se ajeitar. Ignoraram a câmera, o espelho. Beijos na intimidade de quatro cantos. Um porteiro assistindo tudo como se fosse um programa ao vivo; no fundo queria participar.

Não se ouvia som algum. Gemidos abafados pela vontade de preservar alguma sensação maior. Aos poucos aparecia um vizinho ou outro reclamando que o elevador estava com defeito. O senhor de bigode virava a tv, afirmando dar logo um jeito, depois tornava a sentar no seu trono privativo.

Com a demora no conserto, os moradores se rebelaram para ver em qual andar o bendito estava parado. O pequeno vidro deixava escapar os dois entregues um ao outro. Foram se aglomerando para ver um detalhe a mais. Na maioria eram homens, fantasiando estarem lá. Esqueceram o esforço de subir escada, um por um esticava o pescoço para ver melhor. Na semana seguinte, ninguém mais usava o elevador para outro fim, e também ninguém reclamava.

domingo, 16 de março de 2008

Domava a saia contra o vento, protegia os cabelos da chuva. Esperava o ônibus por mais de meia hora, agitando o pé esquerdo. Brincava com o cabelo, enrolando-o entre os dedos.

Finalmente o ônibus chegou. Três números, um motorista servia de cobrador, que deixou dever dez centavos.

Sentou-se do lado da janela que não fechava, alguns pingos escureciam o azul da saia. Perdia o olhar nos postes que parados não seguiam o trajeto, ficando para trás. Fazia certo esforço para ler cartazes de procura por cachorros e meninas, promessas de todos os trabalhos para trazer o amor de volta.

Deixava sua cidadezinha para trás, rumo ao Rio de Janeiro, com prostitutas ociosas no Centro. Manhã abandonada aos mendigos, bêbados largados ao cheiro de urina. Não se assustou com a diferença, achava que Copacabana era muito distante.

Um ponto adiante, subiu um rapaz, descalço. Tinha pupilas gigantes. Sentou do seu lado com uma ameaça nos lábios cerrados, um olhar fixo em sua bolsa de fuxico.

Em sua ingenuidade tentou puxar um assunto. Obtinha respostas analfabetas, com “rs” no lugar do “l”.Ficaram ali conversando até chegar à Enseada. Nunca tinha tido uma conversa o rapaz mulato e magro. Desistiu do furto, levou apenas um sorriso, acenando abismado por trás do vidro.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Olhos assustados acompanhavam o corpo sendo carregado pela rua, depois mudavam de comportamento, virando para o lado em aversão.

As orelhas caídas ouviam insultos, risadas entre dentes. A mulher corria com o quase defunto envolvido nos braços, tentando achar socorro. Ninguém prestava auxilio, apontavam e ficavam ignorando a preocupação. Somente um mendigo elevou as sobrancelhas, como se sentisse compaixão.

O focinho pálido perdia os sentidos com o olhar fixo no outro lado da rua. Corria com outras pernas, parecia nunca chegar ao portão da clinica.

Deboches ficaram na calçada. Ninguém acatava salvar uma vida. Aprovaram a eutanásia. Nem um latido deu em permissão, taparam-lhe a boca com uma injeção.

domingo, 9 de março de 2008

Dava para se notar que ele era solteiro. Bastava olhar para a quantidade de biscoitos no carro de compras para perceber sua total imaturidade.

Faço deduções prosaicas que geralmente são coerentes. Faltava mesmo aliança em suas mãos. Teria sido mais fácil olhar para um dos membros ao em vez de notar seus objetos de consumo.

O que pensariam caso vissem meu adoçante? Seria eu anorexica ou diabética? Talvez as duas embalagens de café forte explicassem minhas olheiras.

Comecei a ficar paranóica com as compras. Quando eu comprava ovos e farinha logo me questionavam sobre o sabor do próximo bolo, quando eram velas, perguntavam qual era a promessa.

Minhas notas fiscais falavam muito sobre mim. Caso alguém a encontrasse seria pior do que encontrar um diário, saberiam até quanto eu costumo gastar, até das marcas genéricas para economizar.

Passávamos nossas compras coincidentemente no mesmo caixa. Tomava o cuidado de deixar sempre alguém a minha frente. Faltavam sempre verduras. Tinha vontade de palpitar, sugerindo pelo menos o ferro de uma beterraba.

Um dia minha ansiedade não pôs ninguém à frente. Eu e ele deitávamos mercadorias na esteira do caixa, com pressa. Nossa afobação trocou as notas, tivemos que mudar de mercado.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Quase caía. Debruçada na mureta da varanda, assistia o movimento da rua, seus carros e pedestres. Fazia muito esforço para ouvir o que se dizia quando passavam com gestos mais efetivos. Um gesticular diferente fazia despencar um dos brincos, tamanha a ousadia dos ouvidos em se esticar mais que a própria cabeça.

Enfeitada em seu costume de domingo, deixou cair seu brinco mais precioso. Correu atropelando os degraus, desrespeitando os corrimões.

O portão não se abria apesar de apertos frenéticos. De repente um som abria o clarão da tarde, além das frestas da grade. Já não adiantava correr, seu lápis-lazúli não tinha mais dono.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Era como se aquela risada invadisse meus ouvidos e fosse me consumindo; amolecendo-me. Aquele tom ritmado fazia meu coração mais humano, adormecia meus temores, minha raiva.

Eu sentia medo de sentir algo diferente, ser assim mais gente. Nunca acreditei em mudanças bruscas, mas aquela criança tocava minha alma fundo demais.

Suas mãos eram rápidas. Meus olhos só viam os rabiscos depois, já prontos, sem saber como um traço colou no outro.

Sua carência fazia com que eu dançasse ballet sem musica alguma. Forjávamos uma platéia, de olhos para a parede, com pontas fincadas no chão e um sorriso bobo na face. Agradecíamos, nós duas, como cúmplices de uma brincadeira que depois poderíamos repetir.

Tirava perguntas de não sei onde. Conhecia minha família de tanto questionar como eram. Pedia com os olhos vidrados para levar meu irmão em uma próxima visita, ao mesmo tempo fazia questão de dizer como meu novo corte de cabelo me caíra bem. Dizia tudo como se os seis anos dela tivessem sido privados de som e a língua não coubesse dentro da boca.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Enquanto todos rezavam junto a cama de mãos dadas e olhos cerrados, eu espiava com um olho só as possíveis reações de um corpo estático. Fechava os olhos quando percebia que alguém mais os abria, fazendo uma cara imaculada e santa.

Lagrimas escorriam pelos rostos. Sentia-me estranha por não ser sensível a validade da vida.

Nos momentos sozinhos, acompanhava-me a lembrança e esta ainda era viva. Bancos no fogão, histórias entre seis bocas mudas.

Lembro com graça de seis pés balançando sem conseguir tocar o chão, esperando a refeição quente. Hoje sempre almoço desacompanhada, hoje fica difícil encaixar minhas pernas de baixo da mesa.

Existem fatos que o tempo não rouba, mesmo assim acordo cedo todos os dias para dizer que eu fui a primeira a ver o sol brilhar ou mesmo a primeira sentir os primeiros pingos de chuva, pondo os dedos para fora da janela. Não me incomodo com as olheiras que este vício me causa, eu gosto de saber que estou viva, com dez ou oitenta anos.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Ouço musica pela manhã. Instrumental, pois meu pensamento tem letras em excesso. Escuto Ravel como se fosse meu próprio coração batendo, acrescentando uma nota cada vez mais forte.

Tomo um banho para espantar o calor. Logo o sinto com mais intensidade. Devo me acostumar com a fervura do verão.

Não há praia em minha atual rotina. Desço e subo escadas com freqüência. A pressão baixa, escondo-me no estoque. Desço as escadas fingindo estar bem.

Aguardo a hora de ir desde que cheguei. Ameaço minha saída todos os dias, para que sintam muita falta.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Chego ao quarto frio no meio da tarde, deixando a bolsa sobre o sofá. Cumprimento meu pai com notável surpresa. Enfim trocamos os turnos.

Ouço a máquina por tanto tempo que sou capaz de ignorá-la

A porta se abre inúmeras vezes. Levo sempre um susto ao ouvi-la bater, como se estivesse fazendo algo errado, e aquilo me imobilizasse.

Vigio a respiração com cautela, sua palidez me desanima. Descubro-me em horas pacatas, sem um relógio por perto. Perco-me em sentimentos turbulentos. A identidade se esvaiu, possui apenas um nome pelo qual atende, abrindo os olhos.

Suas feições doloridas ferem meu espírito. Lembro das vezes em que fugi dos domingos que deveriam ser em família, em que poderia estar sentada ouvindo histórias na beira do fogão.

É inútil remediar memórias involuntárias, são como espasmos de consciência. Olho pelo vidro em busca de aceno de um vizinho, só para não me sentir só.

Migalhas de biscoito caem sobre o estofado. O tédio alimenta a idéia de que o estômago está vazio. Aparece uma formiga que perambula para distrair meus olhos, depois some nas dobras da cortina.

Começa a ficar difícil observar que a noite não avança. Esqueço do horário de verão.

Leio as palavras que escrevi, impregnadas de saudade, ou mesmo de reflexão.

Toda vez que me levanto, ajeito o dedinho torto do pé, em homenagem a sua vaidade.

Há vezes em que seus olhos se abrem, parados, sem reação. O que será que existe na parede branca, que tira a vontade de olhar em outra direção?

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Vi o amor de perto. O tédio foi remediado. Havia mesmo um sentimento, coisa que nunca vi antes. Parecia novela das seis, com direito a gracejos gratuitos.

Viajei sentada sobre a pedra, assistindo o vento brincar com seu cabelo para eu ajeitar depois. A fome nos fez levantar.

Como só havia churrasco pela vizinhança tive que um arranjar algo melhor ao meu paladar. Um sorvete era um motivo para dar sabor ao frio da madrugada.

Levou-me até a pousada rosa. Beijamos no portão. Saiu descalço pela rua de terra, sem saber que eu já ia embora.

Amor de carnaval dura o tempo para lembrar, esperando o próximo chegar para acabar na quarta de cinzas.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Paredes pedem para não ficarem brancas. Mãos enfeitam o tom desbotado; manchando em tamanhos diferentes.

Vejo o tempo passar contando os dedos que quase tocam o teto, penso como alguém subiu ali.

Olho o relógio com ponteiros assimétricos, informando a relatividade das horas. Pego um jornal amassado e tento lê-lo como um homem, sem amassar mais. Meus instintos femininos destroem as dobraduras, logo desisto de dobrar as folhas ao meio, embaralhando os esportes com o jornal da tv. Sono de três horas somadas agitam os foliões que vão para a praia em dia de chuva, para guardar areia no bolso como lembrança além das fotos.

Silêncio na apuração de escola de samba, em contraste com o funk intruso que engole a paz costeira. Dançarinas de rua tremem os postes apoiando-se neles, dançando pela milésima vez o som que não se equaliza.

Competição auditiva. Sinto-me na feira nordestina, com um karaokê em cada barraca típica, tocando Calypso e Legião em menos de um metro quadrado de distância.

Sinto vergonha alheia, constrangida com o efeito do álcool. Brindo (sóbria) um samba raro, descalça, tendo cuidado com os prováveis cacos de vidro, assistindo piranhas travestidas com perucas florescentes, enchimento e saia. Um bom pretexto para sentir como é sentir frio entre as pernas.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Conhecidos pela rua, esbarrando guarda-chuvas. Chovia como se fosse primavera. Um bafo quente induzia a vontade de chegar em casa e tirar a roupa.

Os sinais fechados enrolavam as horas. O desejo de pousar as pernas em um lugar mais alto era tão grande que eu poderia deitar no asfalto e estendê-las no meio fio para ter a regalia do sangue subindo para a cabeça.

Horas em pé faz minha pressão despencar; nem sal grosso me levanta. Sonho com a volta para casa.

Sempre passo em frente ao bar cheio, com maquiagem de trabalho; pensam que vou sentar por ali. Devem se desapontar ao ver que estou indo embora com pressa. Na verdade, tento não olhar para as cervejas na mesa, para não me hipnotizarem.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Renovava a visão ao piscar os olhos. O sol brilhava mais a cada segundo. O calor escorria pelas costas, colando a camisa sobre a pele. Os sapatos quase colavam no asfalto, se fundindo.

Nuvens indecisas deixavam apenas uma faixa de luz aparente. Alguns paravam para fazer um comentário cego, dizendo ser um sinal celestial. A chuva não tardou a cair, eu disse entre dente que os pingos então seriam uma vingança divina, tendo em vista o sábado por chegar. Logo alguém parou para me dar sermão.

Estrago sonhos, rachando-os ao meio, tamanha a severidade do tom da minha voz. Objetivamente não traduzo crença saindo da minha boca. De repente senhoras me abordam, dizendo ainda existir tempo para adocicar minha língua. Quem sabe daqui a alguns anos eu não esteja pregando a palavra bíblica, calando a peste herege. Duvido que este dia chegue.

Religião nunca me exaltou. Não paro para pensar em uma explicação sublime sobre a origem. Não sei falar sobre o começo, mas reconheço tudo que virará adubo no final.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Fiquei feliz por você ter vindo. Só lhe via pela janela, passeando com seu labrador cor de creme. Você parecia pensar alto enquanto chutava as pedras portuguesas soltas na calçada.

Tinha dias em que eu tinha vontade de pular lá da janela para você me acudir com a mesma delicadeza com que dava bom dia aos senhores que dividiam a rua contigo. Minha tolice romântica eu escondia atrás da porta do apartamento.

Uma vez eu joguei um lírio, na esperança de você entender que era eu quem estava lá em cima. Combinei a cor das pétalas com a cor da sua blusa. Ela foi caindo, rodando leve como um vestido em dança. Tocou seu rosto e quase entrou pelo bolso. Foi um jeito sutil de explicar que existia vida atrás das paredes do muro, por trás da cortina translúcida.

Notou o contorno do corpo no tecido branco. Deve ter achado graça em ver as bromélias com a ponta das folhas comidas. Deve ter se perguntado: - De onde surgiu o lírio?

Um punhado de outras flores ainda adornava minhas mãos. Debrucei-me no parapeito, acenando e pedindo desculpas. Pedi que subisse para tomar um café, dizendo que se não houvesse tempo, mancharia a blusa rosada, pois havia tingido os lírios com anilina. Foi assim que colori a sala com a surpresa da sua visita.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Bush exibe uma espada oriental o contraste não me surpreende. A imagem é vendida em jornais. Em plena véspera de carnaval, parece conveniente mostrar um semblante caricato. Aquele sorriso me aterroriza; os olhos não se fecham, dando um tom de condenação a cada espécime diverso.

A política viaja o mundo. Acenos para platéias eufóricas, esperando um deslize no discurso. Após horas de pronunciamento de alguma forma existe um efeito de amnésia. Palavras ditas sem serventia. Mal me lembro da primeira saudação. Presto mais atenção ao murmurinho de início, me abasteço de esperança por o que quero ouvir.

Dentro de cada um perpetua uma vontade de estar no tablado, fazendo promessas por desejo, sem reconhecer o efeito que isso provoca. Tenho certeza que cada cidadão tem pelo menos um plano de cinco metas já feitas. Todos têm tendência à candidatura, por mais que negue.

Eu aprovaria aspirações mais internas. Seria a favor da pena de morte nos casos mais hediondos, para dar lugar aos outros crimes a serem cometidos. Teria lugar para todos os estupradores. Diria isso com um brilho nos olhos, enquanto os hipócritas estampariam a primeira capa com a minha alegria contrastante. Eu sofreria um impeachment antes mesmo de falar sobre a legalização do aborto.

Minha candidatura seria um fiasco, eu teria que fugir para Londres até que meu discurso criminoso fosse prescrevido, perdendo a validade. Eu traria suvenires passados pela alfândega, dizendo que minhas férias foram ótimas. Aguardaria a guarda nacional ser acionada pela tentativa de cumprimentar o novo presidente com um aperto de mãos, estendendo uma réplica do Big Ben.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

O muro não acaba enquanto eu o observo. A única visão faz o trajeto ter quilômetros. Pura ansiedade. Trepadeiras no muro de concreto faz eu pensar o que grafitariam se não houvesse folhas ali.

Vozes rompem o silêncio. Celulares tocam e desnudam a personalidade em toques variados. Alguns discretos, apenas vibram.

Reflito sofre fatos banais. A espera me cansa, observo as janelas do carro. O fume do vidro exalta a silhueta, gestos em excesso. Na caminhonete a carga se agita, sacudindo e ameaçando cair. Acidente com sirene a caminho.

O trânsito pára, o muro não acaba. Sonho em pintá-lo de branco só para poder escrever para entreter a vista de quem passar, parando em cada incidente.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Perdi o juízo. Saio de casa após o almoço, alcanço um transporte coletivo e sigo para onde não há rumo. Peço para parar logo após o túnel. Encaro meus pés em uma calçada desconhecida, sigo as placas até encontrar algo familiar. Dou de cara com Copacabana, com suas areias repletas de guarda-sol, viro a esquina e sei onde andar.

Acho o portão familiar, assim como o número. A porta estava aberta. Subo as escadas e vejo o porteiro distraído. Tento manter um diálogo, mas aqueles olhos pareciam surpresos pela minha visita. Tive que lhe ensinar o que fazer, pedir que interfonasse. Em vez de ligar sentado na mesa, foi lá fora como se ele mesmo fosse entrar no prédio. Achei estranho, mas evitei perguntas.

Entrei no elevador torcendo para que ele não fizesse barulhos extravagantes. Às vezes prefiro escadas, no máximo rolo pelos degraus. Abre-se a porta, vejo olhos gigantes me encarando, um cabelo de quem acabou de acordar, dou um beijo e vou entrando, deixando a bolsa no sofá. Tiro as sandálias e piso no chão frio. Olho o cavalete exposto na saleta, investigo os desenhos por curiosidade.

Toco a pele quente, peço para que tomasse um banho, acabo eu me refrescando com um copo de água. Estendo-me na cama e reclamo da falta de imaginação masculina ao falar do meu vestido verde. Ele parece achar graça, talvez ele próprio tenha pensado o mesmo.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Pinto as paredes de verde, torcendo que isso acalme os ânimos. Dei para tentar de tudo um pouco, já que a racionalidade não estava dando conta.

O computador quebrou com um soco no monitor, descarregava energia nos objetos mais valiosos. Não pude trabalhar, acreditei ser falta de atenção.

Jogava roupas pela janela, eu pacientemente as recolhia e dizia que ele teria que ir embora. Ficava mudo.

Meus gatos miavam aflitos, subiam na pia e derrubavam panelas, como se esperassem alguma atitude minha. Rosnavam enquanto cochilavam, acordando com o rabo agitado.

Não sabia por onde começar. De tanto eu ficar em casa, ele foi se acalmando, parecia gostar de me ouvir cantar de frente para o fogão. Olhava pela sala o abrir e fechar da geladeira, quando eu me virava, ele se esquivava pelo flagra. Sofria de solidão, por não ter onde pousar o olhar.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Perdi minha inocência. Dei-me conta desse processo a partir da frieza de meus atos. Calculo cada passo.

Projetando minhas reações percebo a medida certa da delicadeza. Mulheres devem ser doces e meigas, depois é fácil governar a direção.

Conversava com um amigo em um bar cheio. Tinha tanta fumaça no recinto que eu fumei passivamente a noite inteira. Eu lhe contava sobre a vida, sobre os planos que eu bolava. Eu desfiava as histórias e em seu desenvolvimento eu ia notando como eu fazia propositalmente meia dúzia de pessoas infelizes.

Descobri um monstro de batom e unhas pintadas. Eu conduzia cobaias para a beira da loucura, dizia que os amava e lhe jogava depois de um penhasco enorme. Os enlouquecia por dar o que eles queriam; uma gargalhada para piadas repetidas, um afago após um dia cheio, boa educação para as sogras.

Involuntariamente eu os confundo tirando tudo o que lhes havia dado. Talvez fosse um teste para ver se agüentariam meus acessos de loucura. Eu faço deles um brinquedo, gosto de vesti-los para despi-los, por puro orgulho e deletério. Faria o mesmo episódio se fossem mulheres?

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Faço palavras cruzadas na recepção. Um homem alto me encara pelo espelho pendurado na parede, boceja e senta do outro lado da sala. O ar condicionado me espreme na cadeira acolchoada.

Ouço todos os nomes, menos o meu. Mulheres se equilibram em saltos pretos de sapatos fora de moda, usam laços gigantes no cabelo. Parecem estar paradas no tempo. Meu tempo parece parar. Uma eternidade de espera para meia hora de consulta.

Desde a hora em que cheguei, quis ir embora. Revistas me convidavam a tocá-las, folheei umas três. A música ambiente incitava meus pés a se mexerem por tédio, minhas mãos pousavam sobre o colo, e revezavam-se em segurar meu queixo.

Às vezes acho que médicos são muito carentes, gostam de pacientes aflitos, ávidos por diagnósticos. Esquecem que só queremos sair.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Um menino subia a ladeira equilibrando compras em ambas as mãos. Acenava com uma piscadela gentil em troca de um sorriso.

Fitei suas mãos, alguns calos, uma unha escura. Parecia anêmico pela inteira brancura.

Voltou de casa com uma sacola vazia, começou a catar latas pela rua. Deu-me uma ainda cheia. Recusei por não saber a procedência, ele insistiu. Eu fingi que engoli, logo estendi a oferenda, ele bebeu um pouco. Mexia freneticamente o corpo sem que houvesse sincronia.

Largou as latas e pôs-se a correr ladeira abaixo. Catei latas por ele, esperando que ele voltasse, Em vão, brinquei de tiro ao alvo a noite inteira com um pedaço de ladrilho, arremessando nas latas empilhadas

Acertei uma menina linda que acabou me fazendo companhia. Ganhou-me diversas vezes. Sabotei sua vitória, dei-lhe a lata pela metade e disse que era para ela beber. Pôs-se a correr, então fiquei sozinho, contando os fragmentos de ladrilho.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Empino-me na ponta dos dedos para enxergar além dos carros engarrafados. Os pedestres só possuem cabeças, troco as formas de seus corpos por um momento. Vejo o que não existe. Divirto-me com a criação, tudo fruto de uma mente inquieta, insatisfeita com a realidade.

Notava os olhos entrando pelo meu decote. Encobria uma parte, mostrando as unhas pintadas de vermelho para distraí-lo por um instante. Policiais me põem mais medo que bandido. Por um instante coloquei as mãos no quadril, deixando a vista livre. O que não fazemos por uma informação.

Difícil eleger minha reação ao ver suas mãos me puxando pelo braço. Era uma falsa blitz. Tudo parecia estranho, aquele homem robusto imitava os homens do filme. “Fanfarrão” ele dizia com vontade. Eu sentia tanta raiva pelo plágio que não percebia que ele estava me algemando no poste. Meu gesticular foi sendo amenizado pela força que tinha que fazer para mover os punhos. Minha vontade era de dizer que o José Padilha estava enganado ao inserir na boca do povo palavras vazias.

Gritava em bom português um socorro, depois ia alternando os idiomas. Ninguém se mexia, nem notava que a arma era de plástico.